Em relação ao
texto de Pedro Stieh publicado no artistas Gaúchos em 27-08-2008 sobre
o centenário de Machado de Assis, concordo plenamente com a citação
do Ítalo Calvino em relação aos clássicos, quando
ele fala que é muito melhor ler Machado de Assis do que não ler.
E ainda posso acrescentar que em se tratando de Machado, não basta ler
seus livros apenas uma vez na vida. Experiente fazê-lo pelo menos em duas
fases distintas de sua existência: uma primeira vez na juventude e uma
segunda já na meia-idade; posso garantir que as impressões da
leitura Machadiana serão totalmente diferente em cada fase. Para terminar,
deixo de presente para o artistas gaúchos um texto de minha autoria:
Carta a Machado de Assis,o qual assino sob o pseudônimo Beto
Guimarães.
Carta a Machado de Assis
Ilmo senhor Joaquim Maria Machado de Assis.
As razões que me levam a redigir esta missiva são duas. Uma primeira,
de conteúdo auspicioso e porque não dizer de júbilo, que
decerto está causando rebuliços entre aqueles que se deixam embevecer
pelas obras dos grandes escritores. E uma segunda, onde o alvissareiro passa
ao largo da razão; se bem me faço entender. Cada uma, no seu devido
tempo, será abordada para melhor elucidar as suas, das razões
é claro, intenções.
Meu caro Machado, tu que fostes um mestre da psicologia humana, haverás
de me perdoar pela irreverência deste tratamento na segunda pessoa, que
ora me permito utilizar. Na verdade, se assim o faço, é por acreditar
que essa pretensão é capaz de me fazer aproximar da tua aquiescência
para com as minhas intenções, uma vez que nunca tomastes conhecimento
deste “louco” que ora ousa dirigir-te a palavra.
Tantas são as emoções que me arrebatam neste momento, que
terminei por me esquecer das apresentações. Digo agora, sem receios,
em primeira intenção o que não sou, e por fim, o que sou.
Tenho a plena convicção de que não me encaixo no grupo
de indivíduos que por razões mercenárias ou profissionais
fazem da literatura um meio de vida. Tampouco me aproximo daqueles passionais
que transcendem a realidade ficando apenas à mercê de um fútil
mundo literário onde apenas o imaginário prevalece. Um ou outro,
não me cabe analisar. Deixo este encargo a teu julgamento, porque em
se tratando de assuntos que envolvem a alma humana, tu és um verdadeiro
“connaisseur” (permito-me utilizar o francês porque sei que
tu eras um amante deste idioma). E para concluir este capítulo, o das
apresentações, te deixo saber que sou um cidadão, um homem,
enfim um chefe de família e pai de dois filhos que ultimamente anda deveras
preocupado com o rumo e os caminhos tortuosos que nossa língua portuguesa
está a percorrer. Agora mesmo já te explico os motivos de tanta
agonia.
Para um bom entendimento do que vou expor, se faz necessário voltar no
tempo para que possamos estabelecer um paralelo com o que ocorre nos dias de
hoje. Senão vejamos: em tempos idos, prevalecia neste país uma
doutrina de ensino, da qual tive ainda o privilégio de ser contemplado,
onde o aluno era simplesmente aluno e o professor exercia soberanamente a sua
função, ou seja, ensinar. Lembro-me que nessa época, ao
aluno do ensino básico era dada a oportunidade de ler textos de escritores
consagrados da literatura de língua portuguesa (foi quando li, pela primeira
vez, vários de teus textos) e muitas vezes os líamos dentro da
sala de aula, quando então éramos arguídos pelo professor,
que assim podia avaliar o ganho de compreensão e o raciocínio
de seus alunos, além de estimular o gosto pela leitura, fator de suma
importância na formação acadêmica de qualquer indivíduo.
Por outro lado, a distância entre aluno e professor era mantida e respeitada
dentro de limites aceitáveis; a palmatória, castigos mais severos,
tal qual ficar ajoelhado sobre o milho, esses já haviam sido abolidos
como forma de punição ao aluno mais rebelde. Nada mais justo,
afinal de contas mudanças se faziam necessárias para acompanhar
conceitos mais modernos em um mundo em constante evolução. O Homem
viajava até a lua; um pouco antes disso surgia aqui no Brasil, a televisão
- máquina de fazer malucos e transformar cidadãos quase normais
em idiotas (esse conceito não é meu, porém concordo plenamente
com ele) - e outras modernidades que com certeza não fizeram parte de
teu tempo. E mais, da década de oitenta (se a memória não
me trai, foi nessa época) para os dias atuais, uma outra fantástica
máquina, o computador, vem ganhando espaço dentro do país
com uma velocidade de fazer inveja a qualquer maratonista. Trata-se de um aparelho
que tem por finalidade facilitar a comunicação entre as pessoas,
a ponto de dois indivíduos poderem estabelecer um diálogo em tempo
real, mesmo estando eles em pólos opostos no planeta (para simplificar
e facilitar o teu entendimento, basta imaginar um telégrafo e suas utilidades;
isto feito, multiplique por mil e tu verás a serventia de um computador).
Em decorrência do acima exposto podemos dizer que muitas coisas foram
eficientes em sua evolução natural e outras nem tanto, por exemplo,
a relação aluno-professor e vice-versa está por muito comprometida,
a tal ponto que frequentemente somos noticiados que professores foram ameaçados
fisicamente por alunos. Por outro lado muitos desses mestres não se dão
o devido respeito, ao participarem de rodas de alunos, facilitando uma aproximação
extracurricular de natureza duvidosa. Aquela televisão de que te falei
não desempenha, na educação, um papel efetivo, uma vez
que os programas educativos são apresentados em horários completamente
descabidos com relação ao tempo diário disponível
dos estudantes. O tal computador, que poderia ser uma arma valiosa no ensino,
é muito mal empregado nas escolas, mesmo naquelas que o possuem. Para
agravar o problema, a linguagem usada como veículo de comunicação
neste aparelho, é tudo que se possa imaginar, exceto a língua
portuguesa. Decerto haverás de me perguntar quais as providências
que as autoridades constituídas tomaram em relação a esta
desordem. Antecipadamente já te posso responder que nenhuma. Para não
ser completamente injusto, conto que eles resolveram fazer uma reforma ortográfica
na nossa língua, reforma esta, se a memória não me trai,
já vem sendo programada faz pelo menos vinte anos (não penso que
esta seja a solução para tais problemas). Para complementar este
caos, não poderia deixar de citar o quanto os professores andam insatisfeitos
com suas remunerações (tenho pena dos coitados, andam a mendigar);
na verdade posso te dizer que ao longo de toda a minha existência, nunca
ouvi da boca de qualquer governante ou político ao menos a intenção
honesta de resolver esta justa reivindicação.
E onde posso eu entrar nessa história que estás a me relatar?
Esta é a pergunta lógica que tu haverás de fazer depois
de tudo que te passei.
Confesso-te que o motivo real de pretender te envolver nesses problemas é
por acreditar que somente alguém dotado de uma inteligência superior
possa nos ajudar(esse superior não faz referência à tua
condição atual moradia), e mesmo porque tu foste um daqueles que
sempre amou e fez questão de preservar a nossa língua, durante
o tempo que passaste aqui na Terra. O que te peço é simples. Que
de alguma forma descubras um meio de nos enviar alguma mensagem elucidativa
para que possamos resolver os problemas os quais relatei, porque com os intelectuais
daqui a esperança já não resta. Caso não esteja
ao teu alcance resolver pessoalmente a questão, peça que Ele interfira
a nosso favor; não sei como funciona a hierarquia aí em cima,
mas de qualquer modo acredito que tu desempenhes uma nobre função,
bem próxima a Ele, quem sabe um assessor de imprensa ou qualquer coisa
que a isto se assemelhe.
Se por alguma razão receberes esta carta (missiva) com atraso além
do previsto, não te surpreendas, isto porque os funcionários dos
Correios entraram em greve por mais uma vez. Além disso, quando lá
estive, questionaram o teu endereço e o CEP. O que tenho sob a minha
guarda é: Rua dos Mestres, Ala dos Romancistas, Bairro Paraíso,
Céu. CEP: nº infinito (faça a correção caso
eu tenha me equivocado).
Sem mais, humildemente te peço que recebas estas mal traçadas
linhas e dentro do possível responda num curto espaço de tempo.
Rio de janeiro, 19 de novembro de 2008. Beto Guimarães
Em tempo: Quase me esqueço de mencionar que por aqui estamos “festejando”
cem anos do teu passamento. Muitos eventos literários estão agora
a lembrar de ti e da tua inesquecível obra.
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