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Sobre Percussìvé, de Felipe Azevedo
Carlos Hahn

A vinheta que abre e encerra o disco Percussìvé – ou a prece do louva-a-deus é a cena sonora ideal para representar o conceito da obra: em meio a ruídos de grandes cidades, roncos de motores e tilintar de metais, misturados a cantos de pássaros e o farfalhar de uma floresta, um índio caingangue enraíza sua reza ritmada, espalhando pelo breu a proteção dos ancestrais.

Contraste de culturas e simultaneidade de ambientes – dois padrões que perpassam as 16 músicas do CD. Gravado entre agosto de 2003 e maio de 2004, o disco resgata e recria ritmos basilares da música brasileira para embalar letras impregnadas de imagens e poética artesanal.

No maculelê Percussìvé, primeira música do disco, Felipe Azevedo transforma seu violão num berimbau de seis cordas. Contraponteando em desafios de primas e bordões, o compositor dispensa acompanhamentos percussivos – sua batida é uma máquina orgânica zabumbando rituais.

Na sibilante intervenção da flauta de Daniel Zanotelli e no ronronar do violoncelo de Mônica Lima, o recurso de sobreposição de linhas melódicas é utilizado como fator de complexificação sonora, ora inebriando a mente, ora inquietando o espírito.

A mão que afaga / apedreja devagar / a mesma corda / o tempo inteiro quer pulsar / a cor do mangue / percussìvé, degradê / lubrificada com azeite de dendê – canta o compositor, anunciando que veio para guerrear com armas herdadas do futuro, implacáveis e sutis como o amor e a sabedoria.

Em Vida sempre exata, um carimbó-ijexá que soa como um rap de paradoxal riqueza melódica, Felipe esboça flashes do cotidiano urbano. A perplexidade – estado de espírito habitual do homem pós-moderno – se revela no diálogo aflito dos violinos de Arthur Barbosa e Márcio Ceconello  e em versos como A nossa correria / mastiga mesmo os pés / a gente se consome / em picles, em filés / em tiros abortivos / espíritos sem luz / e a vida é sempre exata / no som do viaduto.

A marcha-rancho Enredo íntimo, a modinha Tema para um compasso de espera (gravada nos dois discos anteriores do compositor e agora interpretada por Mônica Salmaso) e a valsa Antes dos 30 (letra de Marco de Menezes) têm em comum confirmar a categoria canção como dom superior da nação brasileira. Seguindo a vereda aberta por mestres como Tom Jobim e Chico Buarque, Felipe nos brinda com três temas dignos de brilhar entre pérolas do cancioneiro nacional – sempre fiel a seu conceito de explorar as possibilidades do contraponto, seja por meio de violoncelos, clarinetes e oboés (Enredo íntimo) ou de seu próprio violão (caso das outras duas).

As instrumentais Quebradinho e Choro de dedos são chorinhos estilizados nos quais o ouvinte é convidado a apreciar toda a arte desse sólido violonista que, segundo seu colega de ofício Guinga, “conseguiu a síntese”. E é isso mesmo: Felipe Azevedo encontrou o elo entre a raíz e a aura mais elevada da árvore genealógica da música brasileira (que há muito, infelizmente, deixou de ser popular).

O acurado processo de arranjo dos violões, presente em toda a obra, se destaca em Balaio de cordas (samba-maxixe). Ao som do pandeiro de Marcos Suzano, Felipe entrelaça os acordes formando um tecido harmônico dinâmico como o balançar de uma canoa em mar bravio.

Quanto ao recurso do contraponto, o disco chega ao auge em Maracatu torto, onde a dissonância e as linhas melódicas traçadas pelo violão parecem desafiar a capacidade do cantor entoar os versos de Mauro Aguiar – A paixão se aconchegou na toca / que nem jagüaretê / não tem cristão que encare / a fuça da fera / Agora é que meu peito empaca / periga até morrer / de amar, de amor, de encanto / e de primavera.

Em Canibalismoderno, Felipe Azevedo soma flautas e metais ao forró, num resgate da sonoridade típica do tropicalismo de Gilberto Gil e Tom Zé – que de certa forma é criação do genial e inesquecível maestro Rogério Duprat. Valendo-se do espaço físico disponível no encarte do disco, o inquieto compositor aproveita para problematizar: “será que a antropofagia oswaldiana já não cumpriu o seu papel?”.

Nona música do disco, também é nela que surge pela primeira vez uma referência, ainda que indireta, ao inseto que complementa o nome da obra. Que bichos são esses / triturando pedaços / mastigando estilhaços / de uma devoração?

Enunciado no subtítulo do CD, o louva-a-deus se torna ao mesmo tempo uma metáfora do homem pós-moderno – “imóvel a espiar atento os arredores da vida no seu habitat” – e um símbolo da antropofagia, com suas fêmeas de orgasmos insetívoros. Representado na capa do disco como um alien metálico percutindo as cordas do violão – “um mestre dos pizzicatos” – o inseto devorador de cabeças incorpora o que há de mais primitivo e futurista, como um arquétipo do bicho-homem-robô.

Na embolada nordestina Balanço tupiniquim, marcada pelo ponteio característico da milonga, o músico natural de Uruguaiana declara: sou louva-a-deus / cibernético jocoso / animal carnivoroso / predador a butucar... / espio tudo co’as antenas das idéia.

A mutação, a troca de peles, a fusão de identidades, são o mote do maculelê Norato Ciber Cobra. Assim como no transcorrer de todo o disco o artista busca nas expressões tradicionais da nossa música a plataforma ideal para o questionamento da pós-modernidade e a insinuação de novos caminhos, na última canção ele recorre às lendas para recuperar e re-significar a história de Cobra Norato.

Se na narrativa do folclore o homem-serpente quebra o encanto para assumir definitivamente sua humanidade, na adaptação de Felipe Azevedo um cidadão comum se transforma em cobra, engendrando um “ciber punk de alma beat” após comer uma placa de fax, baixar da internet o orgasmo e zipar seu amor no universo virtual de um chip. A rapsódia futurística conta ainda com a hipnótica atmosfera criada pela percussão de Fernando do Ó – obra de mestre.

Apesar de ser coisa nascida da alma, pura expressão da “voz do sangue”, como dizia Nietzsche ao se referir à literatura de Dostoiévski, Percussìvé é fruto de profunda pesquisa musical e bibliográfica, empreendida pelo caxias dionisíaco Felipe Azevedo. O encarte do disco registra tais estudos: cada música traz, junto à letra, um texto informativo sobre a origem dos diferentes ritmos trabalhados e, ao final do livreto, encontra-se a relação de 11 títulos que embasaram o desenvolvimento do projeto.  Quase uma obra acadêmica, não é, no entanto, uma tese. Como já se disse, é a própria síntese.

Carlos Hahn
carlos.hahn@uol.com.br

publicado originalmente em http://www.zoomrs.com/resenhas.html#23


14/01/2010

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Comentários:

Conhecer a música do Felipe é para se encantar no mesmo instante. Felipe traz para sua música um sincretismo de gêneros de raiz brasileira e formas clássicas, contemporânea e jazzística, resultando na geração de melodias, ritmos (pulsos, andamentos, gêneros), dinâmicas, harmonias, texturas e formas musicais, tornando seu trabalho de uma riqueza e originalidade surpreendente. Nas mãos de Felipe, o violão se transforma em um instrumento percussivo, ressaltando valores rítmicos com qualidades harmônicas e melódicas especialmente alcançados por percussionistas, como Naná Vasconcelos e Airto Moreira. Parabéns Felipe!
Cristian Marques - Editor - Modelo de Nuvem Editora, Porto Alegre 15/01/2010 - 18:32

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