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Literatura

Lupicínio Rodrigues: poética do contraponto
Sidnei Schneider

 

Há quem queira Lupicínio Rodrigues relacionado com o mau humor, que precisariam seus ouvintes e admiradores estar na pior fossa para saborear suas composições. Embora seja cada vez menor o espaço para esse tipo de avaliação, ele ainda subsiste devido ao pouco espaço que se dá à plurifacetada música brasileira no cotidiano da mídia.
 
Essa visão, no entanto, não deixa de ter algum apoio na realidade. Quem não se lembra de um cidadão, lá pelas quatro da manhã, afogado no copo, enfumaçado por dois maços de cigarro, pedindo para o cantor repetir mais uma do Sr. Dor de Cotovelo? Todavia, para os que vivem o roteiro dessas canções, outro compositor talvez fosse indicado. Lupicínio, levado demais a sério, poderia ser perigoso, fatal.
 
Apenas dois discos de longa duração foram gravados com sua voz e participação direta: Roteiro de um boêmio (1952) e Dor de cotovelo (1973). Neles, é possível verificar como Lupicínio encara as próprias músicas. As características letras passionais vêm contrabalançadas por uma entonação serena, tranquila e sobretudo contida. Os arranjos, distantes de algo que poderia propiciar o dó de peito no modo de cantar ou um abolerado arrastamento, denotam singeleza e preservam, no fundo, a cadência mais para o alegre do samba, ainda que menos acelerada. O trinir do cavaquinho e os virtuosismos da flauta de Plauto Cruz criam uma ambientação suave e sossegada. O contraponto da música ao tom predominante das letras é evidente. Se Vicente Celestino acentuava a passionalidade da letra com a entonação que o consagrou, Lupicínio não. Segura-as com as rédeas.
 
Mario Quintana, seu contemporâneo e tão boêmio como ele, escreveu que “o sofrimento do poeta é muito relativo. Pois, se um poeta consegue um dia expressar as suas dores com toda felicidade, como poderá ser infeliz?” E Fernando Pessoa, num dos seus poemas mais conhecidos, que “O poeta é um fingidor./ Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente.” Lupicínio não é infenso ao exposto.
 
O humor não está ausente das suas canções. E não se trata aqui do humor que acidentalmente causa uma letra carregada de sofreguidão em quem está de bem com a vida, mas de contrapeso ao já enunciado. Ouça-se Judiaria (Lupicínio Rodrigues), uma guarânia, com violas paraguaias distorcendo as notas como faziam os velhos bluesmen, sem que um tipo de música tenha necessariamente se encontrado com o outro. Na estrofe final, a voz miúda de Lupicínio, em acentuado exemplo do cancioneiro quase falado do nosso país, mais diz do que canta: “Já chega o tempo que eu fiquei sozinho/ Que eu fiquei sofrendo/ Que eu fiquei chorando/ Agora que eu estou melhorando/ Você me aparece pra me aborrecer”. Ignorar o efeito cômico dos últimos dois versos, contido ao máximo pelo que há de dramático no conjunto da letra mas ainda assim cômico, não nos aproximará da sutileza do compositor. No samba-canção Prova do Crime (Lupicínio Rodrigues) acontece algo semelhante: “No final tira um lenço/ Suspira profundo e começa a chorar/ Diz que sempre foi sincera/ Procurando me culpar/ Mas a prova do crime/ Eu tenho guardada/ E posso mostrar/ É um par de sapatos/ Que alguém apressado/ Não pôde calçar”. O uso abundante dos diminutivos, expediente igualmente caro ao autodenominado “poetinha” Vinicius de Moraes, também causa um efeito atenuante. Na famosa Loucura (Lupicínio Rodrigues) é possível ouvir “Milhões de diabinhos/ Martelando/ Um pobre coração”.
 
Em Eu e meu Coração (Lupicínio Rodrigues) a elaboração poética é tão elevada que se sobrepõe à melancolia: “Eu preciso esquecer a mulher/ Que me fez tanto mal/ Tanto mal me fez”. A inversão do segundo verso no terceiro modifica-lhe o sentido, agudiza-o, envia o pensamento mais uma vez ao primeiro, justificando-o inteiramente, pois é essa inversão, esse “Tanto mal me fez”, que explica por que o poeta precisa “esquecer” a mulher em questão. O mesmo, em termos de inusitada imagem poética, acontece em Castigo (Lupicínio Rodrigues-Alcides Gonçalves), quando o personagem da canção, após muito tempo, é procurado novamente pela mesma mulher: “Eu lhe agradeço/ Por de mim ter se lembrado/ Entre tanto desgraçado/ Que em sua vida passou/ Homem que é homem/ Faz qual cedro/ Que perfuma o machado/ Que o derrubou”. Também, e de modo avassalador, na clássica Volta (Lupicínio Rodrigues): “Volta/ Vem viver outra vez a meu lado/ Eu não posso dormir sem teu braço/ Pois meu corpo está acostumado”.
 
Certas parcerias com Rubens Santos, carioca que adotou Porto Alegre e com o qual Lupicínio teve uma série de casas noturnas (Donos da Noite, Clube da Saudade, Batelão, Vogue, Clube dos Infiéis), abordam temas sociais. Ouça-se Samba do Feijão (Rubens Santos-Lupicínio Rodrigues): “Vamos descer o morro/ Para pedir ao Presidente/ Que não deixe subir novamente/ O feijão”. A segunda estrofe propõe mudança mais abrangente: “Nossas esposas serão/ Nossas pastoras legais/ Que dirão ao Presidente/ Que a vida assim está demais/ Vamos fazer uma Revolução/ Em Paz”. Em Maria da Noite (Lupicínio Rodrigues-Rubens Santos) os parceiros denunciam outra realidade: “Maria da noite não crê mais em amor/ Maria da noite diz que tanto faz/ Maria agora/ Oferece seus beijos/ A quem pagar mais”. No samba Meu Barraco (Lupicínio Rodrigues-Leduvid de Pina), o tema envolve dificuldades relativas à idade e à situação social: “Eu vou mudar meu barraco mais pra baixo/ As minhas pernas já não podem mais subir”.
 
O que direi a seguir, registro apenas como a experiência de uma roda de amigos, quando, em plena ditadura, num boteco de quebrada, as estrofes de Nervos de Aço (Lupicínio Rodrigues) ganhavam outra conotação, ao arrepio de qualquer intenção do compositor, mas que comprovam sua maestria: “Há pessoas com nervos de aço/ Sem sangue nas veias/ E sem coração/ Mas não sei se passando o que passo/ Talvez não lhes venha qualquer reação”. A mulher em questão era o próprio Brasil, com a democracia violada pelos ditadores em benefício do capital estrangeiro: “Você sabe o que é ter um amor/ Meu senhor/ Ter loucura por uma mulher/ E depois encontrar este amor/ Meu senhor/ Ao lado de um tipo qualquer”. O sempre sensível Paulinho da Viola gravou a música em junho de 1973: talvez não só a uma roda de amigos ela tenha atingido, alternativamente, desse modo.
 
Existem, ainda, canções de uma animação mais evidente, em função do ritmo ou simplesmente do clima, como Se Acaso Você Chegasse (Lupicínio Rodrigues): “Se acaso você chegasse/ No meu chatô e encontrasse/ Aquela mulher/ Que te abandonou”; Felicidade (Lupicínio Rodrigues): “O pensamento/ Parece uma coisa à toa/ Mas como é que a gente voa/ Quando começa a pensar”; Cevando o Amargo (Lupicínio Rodrigues-Piratini): “Amigo, boleia a perna/ Puxa o banco e vá sentando”; Hino do Grêmio (Lupicínio Rodrigues): “Até a pé nós iremos/ Para o que der e vier/ Mas o certo é que nós estaremos/ Com o Grêmio onde o Grêmio estiver”; Margarida (Lupicínio Rodrigues): “As curvas do mar se curvam/ Pras curvas da Margarida/ Eu vou contar pra vocês/ Como é a Margarida/ É uma espiguinha de milho/ No ponto de ser colhida”. O terceiro CD, do pacote de quatro que a gravadora curitibana Revivendo lançou sobre Lupicínio, vem intitulado como “Felicidade”, e não se refere apenas ao título da canção.
 
Ninguém quer tirar o direito dos ébrios - ou dos sóbrios - de curtirem o que há de dramático e até trágico na obra de Lupicínio, pretendeu-se aqui tão-só robustecer, por pouco lembrado, esse sempre presente outro aspecto, que, ao elevar a tensão intrínseca da sua poética e musicalidade, gerou algumas das melhores canções do país.

02/05/2013

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Comentários:

Lupicínio foi um gênio, um tipo raro que nasce a cada mil anos. Pena que ele esteja esquecido até mesmo entre nós gaúchos. Gosto daquela flautinha em "Caixa de Ódio" (será que é o Plauto Cruz?). Parabéns pelo texto!
Lúcio Humberto Saretta, Caxias do Sul 27/05/2013 - 09:18
Morei perto da casa do Lupicinio Rodrigues. O terreno onde estava instalado o “UNIÃO ESCOBAR FUTEBOL CLUBE, clube amador da Travessa Escobar, hoje Bairo Camaquã, dava nos fundos da casa do Lupi e, dali, conseguia ver o grande compositor de pijama listrado. Trabalhei – e ainda trabalho – no Hospital Ernesto Dornelles, na UTI, quando, ao chegar ao plantão me avisaram: “O Lupicinio esta internado”. Era um quarto bem junto ao Posto de Enfermagem e lá fui ver o famoso paciente. Estava conversando com ele quando adentrou o João Pedro, um auxiliar de enfermagem – jovem – que era somente ligado nas músicas da juventude da época. De imediato perguntei: João, conhece este paciente? O rapazola olhou aquele homem deitado dos pés à cabeça. Fez isso diversas vezes. Foi quando o Lupi, naquela voz rouca, disse: “Se fosse o Roberto Carlos (O rei na Jovem guarda) ele saberia”. Ri e o Lupi também sorriu, olhando a cara apatetada no funcionário. Alguns anos mais tarde tive a oportunidade, em uma atividade literária, de contar esta cena ao Lupinho, que muito conheci jogando bola na quadra de futebol de salão do União Escobar.
ALCIR NICOLAU PEREIRA, Porto Alegre 12/05/2013 - 09:32

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  Sidnei Schneider

SIDNEI SCHNEIDER é poeta, contista e tradutor. Publicou os livros de poesia Quichiligangues (Dahmer, 2008), Plano de Navegação (Dahmer, 1999), a tradução Versos Singelos-José Martí (SBS, 1997) e o volume de contos Andorinhas e outros enganos (Dahmer, 2012). Participa de Poesia Sempre (Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, 2001), Antologia do Sul (Assembleia Legislativa, Porto Alegre, 2001), Moradas de Orfeu (Letras Contemporâneas, Florianópolis, 2011) e de mais de uma dezena de antologias. 1º lugar em poesia no Concurso Talentos, UFSM (1995), 1º lugar no Concurso de Contos Caio Fernando Abreu, UFRGS (2003) e outras premiações. Membro da Associação Gaúcha de Escritores.

sidneischneider@gmail.com


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