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Artigos e Resenhas

Demência Digital ou Demência Interpretativa?
Cássio Pantaleoni

Recentemente li o artigo do Julio Silveira, colunista da PublishNews, com o desnorteado título de “A geração digital é burra demais para entender coisas que ela é inteligente demais para acreditar”.
 
Bem, inicialmente eu poderia reparar, de modo geral, que a vocação do articulista não é o esclarecimento ou a investigação imparcial das teses e antíteses do problema da “demência digital”. Porém, isso não se faz necessário. Na velada apologia ali desenvolvida – em favor das maravilhas do mundo digital – é possível encontrar elementos mais substanciais para provar, juntamente com o despreparo do articulista, uma das teses que mais insistentemente defendo: cultura é aquilo que se cultiva. E o Julio Silveira cultiva a grande confusão interpretativa (algo que está associado inevitavelmente à superficialidade e superfluidade que o mundo digital reforça e promove). Nem menos.
 
O artigo propõe a análise e a refutação do argumento defendido pelo neurocientista alemão, Manfred Spitzer. Para quem não está familiarizado, o argumento de Spitzer foi recuperado em entrevista recente para um grande periódico brasileiro. Vale reler: “O problema com o uso da mídia digital por crianças e adolescentes é que o desenvolvimento cerebral fica desequilibrado, o que leva a um desenvolvimento social e intelectual que poderia ser muito melhor. Na terceira idade, quando as células cerebrais morrem, por diversos motivos, os problemas que se desenvolvem dependem da “reserva cognitiva” que se construiu quando jovem. O estudo de Cingapura mostra que quando as crianças chinesas são ensinadas a usar computador, há o risco de que metade delas não seja mais capaz de ler. Se isso não mostra como pode ser perigoso, então não sei quando alguém terá ideia do que é.”
 
De um lado, então, temos o neurocientista Manfred Spitzer e de outro, o administrador Julio Silveira. Não irei comparar currículos. Provocaríamos um desequilíbrio insustentável. Seguirei a trilha da ponderação ampla, aberta, liberta do juízo de valor biográfico de cada um.
 
Pois Silveira inicia a sua análise de flerte com a ironia. Ele está disposto a concordar que a nova geração – sempre plugada na rede e desgarrada das demandas “reais” do mundo – pode efetivamente estar sendo vítima de um dano cerebral. Entretanto, logo adiante ele associa esse dano ao que ele determina como “nova configuração neural”. Ou seja, para Silveira, pelo fato de ser estimulada por fontes múltiplas e simultâneas de informação, a nova geração desenvolve uma configuração neural que a capacita a lidar com esse mundo. Ele refere-se ao termo neuroplasticidade para representar esse fenômeno. Enfim, para ele, não se trata de um dano, mas de uma vantagem.
 
Faço justiça: talvez ele tenha lido a obra de Jean-Pierre Changeux, Neuronal Man, mas a tenha esquecido. Resgato, na tradução livre, algo relevante para a nossas considerações: “A modificação da eficiência sináptica obviamente será mais fácil de reverter do que a perda de sinapses, mas, novamente, somente se a atividade na rede (sináptica) permitir”. O que quero ressaltar é que a eficiência sináptica, a eficiência dessa rede adaptada aos estímulos do ambiente digital (que Silveira expõe como vantagem), na verdade é essencialmente adaptação. Isso equivale a dizer que somente nessas circunstâncias a eficiência neural da nova geração tem valor de vantagem. Mas como o próprio Changeux expõe: “Aprender é eliminar”. Explico.
 
Na medida em que você reforça determinados circuitos neurais pela necessidade do ambiente, esses se fortalecem; os demais, se não usados, enfraquecem e desaparecem. Quanto menos os “nativos digitais” (como Silveira os denomina) são estimulados às demandas que não correspondem àquelas do mundo digital, mais eliminam milhões e milhões de circuitos neurais que os habilitariam a aprender outras coisas. Essa espécie de “especialização” para o mundo digital é também supressão de capacidades. Especificamente no que se refere ao nativo digital – tão hábeis em lidar com fontes múltiplas e simultâneas de informação – a sua especialidade está em lidar com os problemas do mundo no modo que costumo  determinar como horizontalidade cognitiva, quero dizer, uma habilidade ímpar de lidar com várias coisas simultaneamente no nível de um único plano (ou se preferirem, na superfície). Os hábitos recalcitrantes que os “conectados” adquirem de lidar com o tudo-ao-mesmo-tempo-agora prejudica a capacidade de lidar com problemas do mundo através do que denomino verticalidade cognitiva, ou seja, a habilidade de lidar com uma única coisa em planos simultâneos. Isso não significa que verticalidade é melhor que horizontalidade, ou que devemos estimular um modo de lidar com problemas em detrimento de outro. O ideal reside no equilíbrio entre os dois modos. Reforço: não há vantagem em ser nativo digital; há apenas adaptabilidade.
 
Mais adiante, em seu artigo, Silveira ironiza a afirmação de que “...o nativo digital multiestimulado não conseguiria acompanhar narrativas lineares longas, não conseguiria se engajar em argumentações complexas – enfim não conseguiria ler um livro.” Ora, pense bem, se você avançou a leitura do que aqui escrevo até este ponto, muito provavelmente está ficando impaciente. A série de argumentos que desenvolvo, a tentativa de “limpar” o entendimento equívoco das ideais de Silveira, pode provocar certo “cansaço”. Esse “cansaço” acontece exatamente porque a grande maioria de nós já está habituado com os padrões explicativos utilizados pelas mídias digitais (e antes pela televisão). Alguns de nós desistem de ler o texto só pelo tamanho dele. Quem se arrisca, quer concluir logo, quer entender a mensagem no menor tempo possível. Seguir até o fim se torna um desafio. Essa é a contraprova à ironia de Silveira.
 
Há ainda uma generalização grosseira no artigo. Ele diz: “...estudos mostram que estudos mostram o que foram pagos para mostrar.” Ora, Sr. Silveira, acaso não são os desígnios de seu próprio negócio (ele é fundador da Ímã Editorial, que afirma explorar novos modelos de publicação pelo meio digital) o que o faz ser arauto de uma posição contrária a de Spitzer? Mas o aspecto rústico dessa generalização é a negação impensada desse articulista de toda a ciência humana. Pagos ou não pagos, os estudos que não são sérios são descartados, do contrário não subiríamos em um avião.
 
Há ainda a questão do medo. Segundo o artigo, diante do novo, a geração anterior sempre fica assustada. Ele cita Sócrates, o Eclesiastes etc. Popularmente, conhecemos isso como “medo da mudança”. Nada de novo. É evidente que as transformações culturais promovem receio naqueles que estão habituados a comportamentos arraigados. Realmente não há novidade aqui. Mas estamos falando da escrita. Estamos falando da leitura. Trata-se de um processo bilateral que remonta há mais de 5.000 anos. Escrever e ler permitiu a construção de sentidos diversos que, na base da mímica, das imagens ou das vocalizações de sons guturais jamais poderiam ter sido conquistados. A escrita e a leitura foram fundamentais para o desenvolvimento da ciência.
 
Porém, no que tange a questão literária, questão essa que ultrapassa o simples labor de apor ideias no papel, a questão da poética, aí entramos em uma esfera de discussão que mereceria muito mais aprofundamento. Silveira, que trabalhou com livros, confunde o ato de escrever descuidadamente nas redes sociais com literatura. Literatura é poética. Literatura não é um mero escrevinhar. Porém, ele avança irresponsavelmente nessa área, afirmando que “...os nativos digitais formam a geração mais letrada e mesmo literária desde a Revolução Industrial.” Ora, se isso for verdadeiro, devemos admitir que essa geração está apta a interpretar corretamente os textos de Guimarães Rosa, Camus, Borges, Machado e outros tantos. Se realmente o fato de lidar com o escrevinhar os encaminhasse para interpretações sérias da linguagem, estão as escolas estariam repletas de versados e escolados em interpretação de texto e produção escrita. Mas o que os testes do ENEM e o próprio vestibular nos provam, ano após ano, é que nada mudou, exceto a disposição dessa geração de se livrar do problema o mais rápido possível.
 
Admito que o termo “demência digital” é um tanto forte. Por outro lado, se considerarmos o aumento da população mundial e os imperativos de sobrevivência em um mundo cada vez mais desafiado em sua sustentabilidade, talvez a literatura esteja condenada a ser um luxo para poucos. Nesse sentido, a predisposição para apartá-la das urgências do cotidiano não é senão efeito de tal imperativo. A conectividade do mundo digital exerce o seu papel de nos manter apartado do estudo da história, daquilo que Dietrich Schwanitz refere como o que "...torna compreensível a própria sociedade e, como um elixir mental, desperta a consciência para que vejam o quão inverosímil ela é." Talvez aí a demência aconteça e, por efeito, a literatura perde o estatuto de ser "...uma forma de magia que nos permite participar de experiêcias e, ao mesmo tempo, observá-la", como acredita Schwanitz.
 
Eu creio que a aposta de que todo o conhecimento do mundo está na web – e que por conta disso não precisaríamos nos preocupar muito – é mais ou menos como apostar na nossa habilidade de compreender um livro pela simples leitura  do índice. Ler as referencias na Wikipedia para construir um texto não é suficiente para desenvolver um escritor. Para que haja desenvolvimento do pensamento humano, como já disse, tanto a horizontalidade cognitiva quanto a verticalidade cognitiva são necessárias. E vamos combinar: generalistas são úteis, mas sem os especialistas jamais teríamos construído esses tantos dispositivos físicos preparados para assimilar os softwares que trafegam na rede digital.

02/08/2013

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  Cássio Pantaleoni

Cássio Pantaleoni nasceu em agosto de 1963, em Pelotas, Rio Grande do Sul. Escritor, Mestre em Filosofia pela PUCRS e profissional da área de Tecnologia da Informação. Vencedor do II Premio Guavira de Literatura, na categoria conto, em 2013, com o livro “A sede das pedras”; finalista do Jabuti de 2015 com a novela infanto-juvenil “O segredo do meu irmão”. Segundo lugar na 21a. Edição do Concurso de Contos Paulo Leminski; duas vezes finalista no Concurso de Contos Machado de Assis, do SESC/DF; duas vezes finalista no Premio da Associação Gaúcha de Escritores (AGES). Desenvolve workshops sobre leitura, técnicas de escrita ficcional e filosofia aplicada à literatura. Obras Publicadas: “De vagar o sempre” – Contos – 2015, “O segredo do meu irmão” – Novela infantojuvenil – 2014, “A corda que acorda” – Infantil – 2014, “A sede das pedras” – Contos – 2012, “Histórias para quem gosta de contar histórias” – Contos – 2010, “Ninguém disse que era assim” – Novela – 2006, “Os despertos” – Novela – 2000.

cassio@8inverso.com.br
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