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Literatura

Qual é, afinal, a melhor idade?
Marcelo Spalding

Faz algum tempo que os politicamente corretos não falam mais em terceira idade, e sim em melhor idade. Eufemismo para uns, delicadeza para outros, designa a idade em que as pessoas já não precisam mais ocupar-se com trabalho e têm tempo para gozar a vida (supondo, é claro, que tenham também dinheiro e saúde). Como convivo com uma boa dezena de pessoas na faixa da melhor idade, sei que mesmo entre elas a designação é discutível: minha avó, por exemplo, morre de saudades do tempo em que era casada (enviuvou cedo, aos vinte e seis). As idades mais votadas como melhor idade por essas pessoas são a infância e a adolescência, a infância para umas, a adolescência para outras.

Mas Rubem Mauro Machado traz um termo que considero preciso para designar essa fase juvenil e intensa que elas chamam de melhor idade: a Idade da Paixão. Em seu romance, A Idade da Paixão (Bertrand Brasil, 2006, 288 págs.), o narrador e protagonista é um jovem de dezoito anos que mora sozinho na capital do Rio Grande do Sul (os pais são de Santa Maria) e está no último ano do Clássico, às portas do vestibular. Idealista e socialista (o romance é de 1986 mas a história se passa em 1961, um tempo em que alguns jovens ainda eram de esquerda), gostaria de ser escritor e viver de seus contos, romances e panfletos políticos, mas o pai gostaria de vê-lo advogado e encaminha-se para estudar as leis, prometendo, entretanto, que será ético, justo e fará sua parte para mudar o mundo.

Não demorará para o jovem idealista perceber os paradoxos de sua escolha. Um dia, quando vai pela primeira vez à casa de sua namorada, conhece o pai da moça, homem sério, udenista, advogado e conselheiro do Internacional. À mesa, o homem descobre que o jovem quer estudar Direito e, depois de saudar a profissão, o alerta: só que você precisa aprender a separar Direito de Justiça. E dá um exemplo: um homem pobre fez um seguro de vida. Aprovado no exame de saúde, pagava todo mês pontualmente os prêmios. Uma semana antes de terminar o período de carência, morre inesperadamente, de um derrame cerebral. A viúva entra na justiça, pleiteando o pagamento do seguro. A seguradora nega-se a pagar, alegando o não-vencimento, ainda que por seis dias, do período de carência. O sogro deu ganho de causa à companhia de seguros.

Na hora o jovem se cala, não ficaria bem discutir com o talvez futuro sogro, com o pai da menina que quer impressionar. Mas na narrativa ele se debate contra a verdade pronunciada pelo sogro e arremata com um ingênuo e belo desabafo: “Talvez caiba a Pomar alguma razão nessa sua visão tão pragmática de seu ofício. Eu simplesmente não a aceito. E não posso aceitá-la porque tenho 18 anos e nessa idade se há coisa que nos pertence é um limpo sentimento de justiça. Se o Direito não se confunde – o mais possível, claro, dentro da falibilidade humana – com a Justiça; se a Lei não é a fabricação abstrata que procura ao máximo ser a concretização, no plano das relações humanas, do ideal abstrato da Justiça, então todo esse aparelho do Judiciário, com seus ritos e sua linguagem, que me lembram os da Igreja, não passa de encenação grotesca de uma impostura. (...) Se assim é, afirmo a mim mesmo, não quero ser um homem do Direito. Não ambiciono na vida riqueza, poder, ser um vencedor no sentido burguês. Quero apenas – e não é fácil – tornar-me um ser ético. Alguém que não se corrompa, que mantenha intacta a capacidade de indignação, que conscientemente não prejudique seu semelhante. Se essa profissão não preenche meus anseios, eu a desprezo. Trabalharei em outra coisa que, sem me deixar morrer de fome, possibilite ao menos me exprimir.”

Não é o corpo atlético, a efervescência do sexo, a mobilidade dos músculos que faz da juventude a Idade da Paixão, é essa esperança, essa fé na vida, na justiça, de fazer diferente, ser diferente; é quando somos num dia bailarina, no outro jogador de futebol, bombeiros, professores, médicos, jornalistas, idade em que ainda achamos que podemos mudar o mundo e, mais incrível ainda, que o mundo quer ser mudado.

Adiante o narrador sintetiza isso em uma frase: “os soldados são sempre adolescentes, embora o mundo finja desconhecer esse fato”. E é isso! O soldado é – regra geral – aquele que acredita em algo, numa nação, numa idéia, num mundo melhor, é aquele que morre por uma causa. E de fato, muitas vezes, morrem (quantos jovens morreram em 64? Será que o protagonista dessa história não morreria em 64, se a história continuasse a ser contada?).

Voltando ao intenso e cativante romance de Rubem Mauro Machado, três fatos marcarão nosso jovem que luta para sair do Clássico e entrar no Vestibular. Primeiro, conhece uma menina, uma bela e melancólica menina por quem se apaixona. Depois, estoura a Legalidade, reação liderada pelo então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, contra o Golpe Militar que se arquitetava em 1961, por ocasião da renúncia de Jânio Quadros. Com a paixão que a idade permite – e que o escritor aumenta e alimenta – ele cerra fileiras ao lado do povo armado, vibra com a posse de Jango e tem encontros quentíssimos com a bela e melancólica Sílvia, para depois ser jogado em profunda tristeza com o fim do namoro.

Não é comum romances serem protagonizados e/ou narrados por adolescentes, eles ficam numa linha tênue do que se chama literatura infanto-juvenil (veja-se o caso de É tarde para saber, de Josué Guimarães, tido como literatura juvenil mas de grande qualidade estética e enorme efeito). Mas Rubem Mauro Machado consegue, com domínio absurdo da linguagem e com o deslocamento histórico dos fatos, fazer de A Idade da Paixão um romance para jovens, adultos ou pessoas da melhor idade. Um romance, aliás, premiado com o Jabuti em 1986. Isso mesmo, há vinte anos atrás, e nunca havia sido reeditado, ainda que a edição da José Olympio tenha se encerrado em poucos meses.

Por quê? Difícil saber, o autor não deixa claro e não nos cabe conjecturar. Sorte a nossa que volta nesse 2007 tão sedento de paixão, de idéias e bandeiras a se defender, nesses tempos tão voltados para a história sem saber o que fazer com a história que se tem. Sorte a nossa que volta para ajudar-nos a entender qual a grande vantagem da juventude em relação às outras idades, e reafirmar que se não é esta é a melhor idade, é, pelo menos, a autêntica Idade da Paixão.

27/11/2007

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  Marcelo Spalding

Marcelo Spalding é professor, escritor com 8 livros individuais, editor de mais de 80 livros e jornalista. É pós-doutor em Escrita Criativa pela PUCRS, doutor em Literatura Comparada pela UFRGS, mestre em Literatura Brasileira pela UFRGS e formado em Jornalismo e Letras.

marcelo@marcelospalding.com
www.marcelospalding.com
www.facebook.com/marcelo.spalding


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