Ao ficcionista ou poeta, explorar o vórtice das contradições do ser humano, da sociedade e do mundo não é algo ocasional, mas parte inafastável do seu cotidiano. O que outros varreriam para baixo do assoalho, a fim de se ocuparem das responsabilidades, o escritor coloca sobre a mesa e usa como matéria-prima para dar conta das suas.
Daí que talvez não seja exatamente mais sensível, como se acredita serem os artistas, mas simplesmente mais aberto a manusear o que, de uma forma ou outra, a todos atinge. Contudo, ao transformar tais questões em palavras, se obtém alguma gratificação, paga um custo. Entrar na caverna do Minotauro pode ser heróico, mas também doloroso. Seja para Ariadne, seja para Teseu.
Alie-se a isso as dificuldades criadas pelo fato de exercer uma atividade que exige longa formação; trabalho solitário e exaustivo, normalmente contabilizado em anos a cada obra; certo desapego para encarar uma remuneração inadequada ou inexistente. Mesmo distante de uma escrita autobiográfica, expõe-se até os ossos, oferecendo a face à crítica e ao público. O conjunto faz do escritor alguém potencialmente frágil.
As histórias de superação ou sucumbência a situações de miserabilidade, internamentos e suicídio são bem conhecidas na literatura. Recordo sempre do que disse o poeta russo Nicolai Assiéiev após a morte de Vladimir Maiakóvski, ao avaliar que a essa fábrica de felicidade, de aspecto invulnerável, os amigos e cidadãos deveriam ter dedicado maiores cuidados.
A um artista da palavra (ou a qualquer outro), esse cuidado recompensa de forma peculiar e distinta. Pequenos gestos sinceros o tocam seguramente mais do que a estrondosa pompa de um prêmio. Gestos desse tipo me fazem relembrar certa madrugada. Um ônibus com a ventarola quebrada circundava os picos de neve, entre Cuzco e Arequipa, a trinta graus abaixo de zero. Nos vidros, cristalizavam-se as infinitas formas das rosáceas de gelo. Três pares de meia nos coturnos, duas calças e camisas, blusão de lhama e sobretudo não me aqueciam o suficiente. A mulher do condutor enrolava e queimava revistas para descongelar o parabrisa e manter o velho ônibus a caminho. Um homem de aspecto incaico levantou e sem dizer nada me estendeu um cobertor. O gesto entalhou-se para sempre na xilogravura da memória. Não exatamente em função de me salvar do frio, mas porque ali estava um ser humano ajudando a outro sem outro interesse a não ser o de lhe fazer bem. Não tenho medo de errar: de tais coisas, mais do que de benesses ou facilidades, alimentam-se poetas e prosadores. De alguma forma, buscam reparti-las com o leitor. E no campo oposto, as execráveis são apontadas e dissecadas.
Há pouco tempo, tive de cumprir algo que não fazia parte das minhas tarefas habituais. Criticar comparativamente e por escrito, enquanto jurado de um concurso, obras de autores meus amigos. Fazê-lo e ser ao mesmo tempo cuidadoso não é simples de alcançar fora de uma conversa informal com o colega. Não sei se obtive o bom termo, o fato me ocupa até hoje. Pois quem escreve não está imune à necessidade de prestar atenção e cuidados a seus pares. E, evidentemente, a todos que o cercam, leitores ou não. Assim, ser cuidadoso em relação aos outros é também cuidar-se, no sentido de habilitar cada vez mais a sua humanidade para o convívio.
Sugestionado por uma amiga, escrevi este pequeno texto para meninos e meninas que faziam quimioterapia e seus familiares. Talvez com ele se possa ampliar a discussão.
CONFIANÇA
Vi um pai e uma mãe ao redor de uma pedra redonda de granito, três as filhas. Elas subiam na pedra, deixavam-se cair de costas, e o pai as salvava. A menor, numa das vezes, olhou para trás, insegura. Então o pai falou, olha pra frente, fecha os olhos. Ela fez, e se deixou cair, livre de ter de confiar apenas em si.
Penso que esse liame, a possibilidade de poder contar um com o outro, por mínimo que seja, mina a lei da selva que nos quer indiferentes ou inimigos. Move cordilheiras e outras galáxias.
Tema sugerido pela revista O Cuidador. Texto originalmente publicado na edição Ano III, N° 14, 2011/ 1.
Sidnei, mais do que um texto claro e conciso em seus objetivos, uma grande mensagem. Não gratuitamente de esperança, mas profundamente de consciência.
Grande abraço, meu caro.
Bruno Bruno Brum Paiva, Porto Alegre/RS29/05/2011 - 18:16
Prezado Sid. Belo texto: coerente, lúcido, elevado e acima de tudo humanÃssimo!! Grato por compartilhar!!! Abração! Felipe Azevedo Felipe Azevedo, Porto Alegre/RS26/05/2011 - 23:35
Sid,
acho que gente aprende a se defender e desaprende o cuidar, o gostar, o estar logo ali de mão estendida. Aprende a competir em vez de compartilhar. Que pena.
De resto, voto pela confiança, sempre. Melhor a dor do tombo do que história vivida pela metade. LetÃcia Schwartz, Porto Alegre - RS26/05/2011 - 09:34
Tive a oportunidade de receber esses gestos cuidadores e por tanto uma parte de mim sorri em sol, Sidnei. Eles chegam aos porões do meu cotidiano, ali fazem abraço e depois emergem para a luz da praia. Refletem-se nos textos que vão surgir, nos olhos dos meus oficinandos, no brilho das pupilas dos que serão oficinandos dos meus oficinandos. Tenho enorme gratidão pela maciez da escuta, e por essa fala que dá alento e explode nas cores de um balão. O balão pode voar alto, sereno, firme alimentado por esse fogo do afeto que há entre nós, humanos. Telma Scherer, Porto Alegre/RS25/05/2011 - 22:55
Esse vale a pena ler de novo. Muito bom. Abraço e sucesso. Liana Marques, Porto Alegre25/05/2011 - 22:12
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