Há esse tempo da literatura, tempo que dissipa o “eu”, seja no escritor ou no leitor. Para o primeiro, acontece como pausa longa, exigindo do tempo a sua verticalidade, como se cada anotação, cada tentativa de transformar suas ideias em texto literário, estivesse ali em queda livre naquele instante alargado da dúvida por essa ou aquela expressão do dizer. Para o segundo, acontece como melodia marcada por colcheias ou semicolcheias dentro do seu compasso de interpretação, na horizontalidade que é precisamente o caráter de ser horizonte, vez que outra debruçando-se sobre uma pausa breve para repensar a respeito.
A literatura sempre esteve de caso com o tempo, ainda que não estivéssemos interessados em ganhá-lo, como aproveitamento de um espaço de nossas vidas pelas vias do ensimesmado hábito de se por diante da obra literária. Na verdade, esse enredamento com o tempo se dá – pelo vício da interpretação popular – como “tempo gasto” ou (para os muitos desinteressados) como “perda de tempo”.
O tempo exigido pela literatura sempre é um contratempo. Corre perdido entre as ocupações banais da vida: as esperas na filas dos supermercados, as distâncias entre um e outro lugar, o simples pensar nas demandas financeiras, nos efêmeros rituais de relacionamento ou na entrega ao sono que nos carrega ao final da noite. Quando o escritor ou o leitor deposita tempo na literatura decidem que o tempo urgido pela vida é o oposto do verdadeiro tempo: esse é tempo corrido, o primeiro é tempo encontrado – um contratempo a favor do tempo essencial.
Como escreveu Mia Couto: “Ensinar a ler é sempre ensinar a transpor o imediato”. Sim, porque o imediato é tempo da vida simplesmente vivida porque há que se viver. Já nem bem pensamos nela (a vida) e já nos escapa o presente em razão do imediato acontecer de ser já diferente. Para a literatura, a ditadura urgente do imediato deve ser derrubada; é necessária uma revolução contra o tempo corrido, pular o muro que divide a ocupação e o sonho. O tempo da leitura literária é o tempo da divagação compassada do leitor.
“No lugar [do teu país] (...) colocar um poema. No lugar do coração colocar um poema. Depois, dizê-lo uma e outra vez, até ser tudo.", escreveu Valter Hugo Mãe, talvez sem notar que escrevia sua literatura evocando a pausa longa que é tão própria do escrever. Porque escrever literatura é decidir por colocar um poema em tudo, enquanto há tempo. Esse tempo que o escritor vive naquele poema que está sempre para nascer, essa gestação do sentido que se dá ao modo de quem para pensar, sem pensar em si, sem pensar o “eu”.
Assim, o tempo da literatura acontece no escritor como pausa para pensar e, no leitor, como pensamento para pausar o imediato da vida.
A relação do tempo com a literatura é o que determina a beleza da obra literária. Não houvesse a pausa longa para pensar o que quer escrever, o escritor poderia estar meramente ocupado com um rascunho, uma ideia ainda disforme. A pausa no tempo literário é sempre a dimensão da qualidade estética do texto. E de modo oblíquo, para o leitor, a beleza de um texto literário acontece quando ininterruptamente o ritmo da leitura nos aproxima da compreensão do “texto todo”.
O tempo profundo, vertical, abissal; ou o tempo avistado à distância do “eu”, horizontal, nascente e poente. O tempo é o que define o literariamente construído e reconstruído sempre e toda a vez que o escritor ou o leitor já se encontra enredado com o tempo, ou seja, em tempo com o tempo, que distancia do “eu”.
Assim, para o leitor mais descuidado, lembro as palavras de Valter Hugo Mãe: "Se ele te falar dos poemas, ouve tudo. É a única coisa que conta, a poesia.” Para o escritor, por favor, se dê um tempo.
Preencha os campos abaixo.