Um artigo do Professor Antonio Pietroforte, publicado no site Carta Maior, recupera a discussão sobre a relação entre literatura e ideologia: afinal, seria papel da literatura o engajamento político?
Partindo de um fragmento da obra de Monteiro Lobato, Pietroforte pergunta: “...em Literatura, como lidar com isto: ‘Tia Nastácia era uma negra de estimação’.”
A pergunta é pertinente, afinal o fragmento parece considerar duas dimensões do possível racismo de Lobato. A primeira diz respeito ao momento histórico de Lobato, quando as nuanças do racismo da República Velha moldavam o pensamento corrente. A segunda está no próprio fragmento, onde a palavra “negra” junto à palavra “estimação” aproxima-se da comparação inevitável com os “bichos de estimação”.
Se usarmos o conceito de ser-no-mundo de Heidegger para interpretar a primeira dimensão do suposto racismo do escritor, temos que ser complacentes. Ao desenvolver a Analítica Existencial através do conceito de “Fürsorge” – aludindo às dimensões de já-ser-no-mundo, para-adiante-de-si e junto-aos-entes –, o homem jogado no mundo de sua existência temporal acontece como facticidade, projeto e discurso, respectivamente. Ora, Lobato acontece no mundo como ser-aí, como fato incontornável na facticidade do seu mundo. Todo o projeto de ser dessa ou daquela maneira parte daquilo que é fundado quando ele acontece de ser-no-mundo no caráter de estar imerso nos fatos de seu tempo, assim como todo o seu discurso de ser. Não surpreende que o ruído de fundo do pensamento de Lobato esteja aproximado das nuanças da Republica Velha.
Apesar disso, não podemos julgar de modo tão decisivo as metáforas de Lobato como franca alusão racista. Vale avaliar se nossos juízos não inoculam esse aludido racismo nas metáforas do criador de Narizinho. A hipótese de que o racismo estaria na nossa interpretação, e não necessariamente na intenção fundamental do escritor, é válida.
A leitura atual do fragmento “Tia Nastácia era uma negra de estimação” flerta com os sentidos comuns que as palavras ali fazem aparecer. É preciso reconhecer que “negra”, quando associado à “estimação” carrega sentido pejorativo, haja vista que nos referimos desse modo aos bichos de estimação. Seria deselegante então conceder à Tia Anastácia o mesmo estatuto.
Entretanto, deveríamos dar espaço de defesa à Lobato, pelo menos naquilo que pretende (ou poderia) ser a sua representação metafórica do sentimento (possivelmente carinhoso) que era ofertado ao convívio entre a Tia Anastácia e a turma do sítio.
Há que se recuperar o sentido de “estimação” que deriva do verbo “estimar”, cuja etimologia remete ao latim arcaico aestumare, que significa “valorar”, “ter em conta”, “apreciar”; significados que o uso popular aproximou de “prezar-se” ou “considerar”. Mas vale ainda testar algumas variantes, haja vista que a palavra “negra” empresta na apreensão geral da sentença um tanto de preconceito racial. Troque-se “negra” por “loira” e já o sentido hesita: “Tia Anastácia era uma loira de estimação”. É possível que tal versão suscite agora algo de espirituoso. Entretanto, mesmo assim poderia soar pejorativo, como se loiras não pudessem ser estimadas comumente. Mas o que aconteceria se escrevêssemos: “Tia Anastácia era um humano de estimação”. Nessa versão, o sentido quer acontecer de modo menos difuso: Tia Anastácia era o tipo de humano pelo qual as pessoas do sítio nutriam estima, valorizavam, apreciavam, consideravam etc.
Claro que Lobato poderia ter escrito: “Tia Anastácia era uma afrodescendente muito estimada no sítio”. Assim o fragmento diria a mesma coisa, mas o aspecto pejorativo se diluiria completamente.
Qual o sentido primordial pretendido por Lobato? Seria a tentativa de ser engraçado, como no exemplo da “loira”? Ou que Anastácia era muito considerada? Como isentá-lo da acusação de racismo quando mais adiante ele se refere a Tia Anastácia como “macaca de carvão” ou como alguém de “carne preta”? Não podemos ignorar tais metáforas e nem o fato de que são metáforas. Será que o sentido pejorativo vigorava no autor ou vigora no leitor?
A discussão acerca da função ética ou estética da literatura é difícil. Essa conjunção alternativa – “ou” – desvia a discussão inevitavelmente para o campo do ideológico e torna a literatura refém de paradigmas que a desgastam. Por que não sugerir que a literatura seja antes de qualquer coisa algo sem função ou até mesmo inútil? Não como como se ela fosse algo sem sentido, mas antes uma inutilidade que a recoloca na circunstância de estar sempre em obra de uma representação do espírito de época, acontecendo como já-assim, desse-modo, diante-de e junto-à, através daquilo com a qual ela se instrumentaliza – a palavra.
Ao escritor caberia representar o seu mundo, na sua época, adiante do dizer do seu tempo mas partindo do costume do dizer, e junto aos sentidos possíveis. Fazer literatura é estar sempre em obra da representação e talvez até refém dela. Todavia, já que a perspectiva é sempre determinante, nunca deveríamos submetê-la ao banco dos réus. Difícil exigir do escritor que ele esteja na mesma posição do leitor ou do crítico, porque seria uma obra sem legitimidade, seria texto conveniente. A literatura, assim como a filosofia, não é um discurso; é uma reflexão; Quando abdica do seu caráter de ser reflexiva, ela perde o estatuto de ser literatura, tornando-se doutrina.
Ao meu modo de ver a literatura é sempre uma rasura na história oficial; algo que alguns creem que deva ser corrigido para que o espírito da época não seja ameaçado. Isso não quer dizer que a rasura seja necessária. Enquanto rasura, a literatura mais acontece assim: como arte, como travessura, como provocação. É o que emerge enquanto estamos submersos nos temas da época. Somente quando nos ocupamos mais com a travessura do que com a história oficial, é que a literatura acontece de ser efetivamente libertadora, no sentido de oferecer outras perspectivas. Mesmo ao arrancar críticas ou acusações de preconceito, a literatura – enquanto rasura – efetiva o seu caráter de ser aproximadora (a saber: aproximar-nos de realidades alternativas). Nesse caso, ela liberta a outra história – aquela que poderia ter sido (o que efetivamente não tem qualquer utilidade). A literatura nos proporciona outras versões, outras perguntas que podem estar subtraídas da história oficial e, assim, nos dá aquilo de que mais precisamos: a esperança. A esperança de que antes da crítica alguém tente entender que tudo não passa de uma história. Apenas uma história. A literatura não prova nada.
Parabéns, brilhante texto – profundo, leve, preciso.
Conseguir transitar no aspecto do racismo em Lobato já parece impossÃvel ou muito arriscado. Além disso, incluir Heidegger, que é o único filósofo do qual não consegui entender nada, e não ficar seu texto ininteligÃvel, parece-me quase impossÃvel. Mas, aà está.
Entretanto, um comentário: mesmo que não se busque utilidade para a literatura - muito bem demonstrado no texto -, ainda assim parece-me que ela tem papel insubstituÃvel também para elaboração de assuntos caros a nós, de acordo com a realidade, a imaginação e os sonhos de alguém, em cada época.
Jairo Back, PoA 30/08/2016 - 14:07
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