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O poder da escrita e o poder da leitura
Rosa Maria Custodio

Cada livro que lemos amplia nosso imaginário e nos desperta para novas maneiras de ver o mundo e viver nossas vidas. E o escritor, com seu jeito único de olhar, perceber e sentir, vai tecendo novas representações da nossa realidade. Entre aqueles que escrevem com maestria e criatividade, estão os que mais nos impressionam e, por vezes, os que mais nos chocam. Seja pelo realismo, seja pela capacidade de ver o que os outros não veem, ou veem e não prestam atenção, seja por inventarem e acrescentarem novos tons, alguns vibrantes, outros melancólicos, dissonantes e até desalentadores, que são cinzelados em suas próprias mentes.

Inúmeras vezes, nos meus anos de muitas viagens pelo mundo, me perguntei de onde vinha o mito da mulata gostosa e fogosa que algumas entidades brasileiras ligadas ao turismo gostavam de propagar no exterior. Nas décadas de 70 e 80 o Brasil era muito bem cotado, lá fora, por seu café, seu futebol, seu samba e suas mulatas. Até presenciei brigas de casais europeus e norte-americanos, que interrompiam suas férias no Rio de Janeiro ou no nordeste brasileiro, para não interromperem seus casamentos. Nas apresentações artísticas das afamadas dançarinas, que começavam nos aeroportos e prosseguiam pelos hotéis quatro ou cinco estrelas e casas de show, os maridos ficavam enlouquecidos e as esposas caiam em depressão. Mulheres de educação apurada, de gosto sofisticado e atitudes ponderadas, perdiam o chão.

Com a leitura de O Cortiço, de Aluízio Azevedo (1890), compreendi o poder mágico das palavras: elas criam modelos fictíciosque depois ganham materialidade e ocupam lugar de destaque no imaginário das pessoas. Entendi a razão daquela febre que se tornou nacional, para delírio dos homens e martírio das mulheres. Acho que vale lembrar um trecho que descreve a dança de Rita Baiana (que depois ganhou corpo no papel interpretado pela atriz Betty Faria, no filme dirigido por Francisco Ramalho Jr.):

Ela saltou em meio da roda, com os braços na cintura, rebolando as ilhargas e bamboleando a cabeça, ora para a esquerda, ora para a direita, como numa sofreguidão de gozo carnal num requebrado luxurioso que a punha ofegante; já correndo de barriga empinada; já recuando de braços estendidos, a tremer toda, como se se fosse afundando num prazer grosso que nem azeite, em que se não toma pé e nunca se encontra no fundo. Depois como se voltasse à vida, soltava um gemido prolongado, estalando os dedos no ar e vergando as pernas, descendo, subindo, sem nunca parar com os quadris, e em seguida sapateava, miúdo e cerrado freneticamente, erguendo e abaixando os braços, que dobrava, ora um, ora outro, sobre a nuca, enquanto a carne lhe fervia toda, fibra por fibra, tilintando.

 

Dando um salto no tempo e mudando a direção do pensamento, chegamos até Dalton Trevisan (O Vampiro de Curitiba) e Rubem Fonseca (Feliz Ano Novo), contistas da segunda metade do século XX que ferem minha sensibilidade e provocam em mim uma grande indignação. No meu entendimento, o realismo sádico de suas obras tem como finalidade provocar o espanto e o mal estar nos leitores. Eles criam personagens abomináveis e cenários sórdidos, depois contam suas histórias abjetas ou deprimentes e partem para outras “proezas literárias”. O leitor, indignado ou enojado, que se dane.

Autores dessa natureza foram aclamados pela crítica e tornaram-se figuras de estudo obrigatório nos meios acadêmicos porque, entre outras razões, feriam o código de expectativas da inteligência brasileira, libertavam a literatura de uma série de tabus, ou de uma falsa consciência crítica, que esperava dos artistas e de suas obras uma posição mais elitista...

As consequências dessas novas modas literárias é o que vemos proliferar na nossa literatura, no nosso imaginário e na nossa realidade, nas últimas décadas. Uma inversão de valores. As novelas e os filmes, na sua maioria, mostram dramas urbanos onde a violência impera e os anti-heróis dominam. Roubar, estuprar e matar são ações corriqueiras no dia a dia dos grupos criminosos que agora são chefiados por pessoas bem sucedidas e aclamadas. Pessoas que têm acesso livre nas rodas sociais e políticas, porque têm muito dinheiro, vivem em mansões, andam em carrões, passeiam em iates, e se comportam como se comportavam as elites que elas tanto invejavam e combatiam.

Excetuando as obras e os autores, que felizmente também existem e realizam bons trabalhos em prol de uma sociedade mais culta e verdadeiramente democrática, e seguindo a minha linha de raciocínio que contesta os valores difundidos (não a maestria da técnica literária) por autores como Trevisan e Fonseca, consagrados por uma elite cultural e ideológica,pergunto:

Onde estão as personagens representativas das camadas mais pobres da sociedade, que agregam valores e significados em suas existências, que superam obstáculos e conseguem conquistar um lugar ao sol por seus próprios méritos?

O que vemos, nas periferias que se multiplicam em todas as cidades brasileiras, é uma realidade triste e desalentadora. É o retrato do abandono, da miséria, da luta ingrata pela sobrevivência. Ou a subserviência temporária no mundo do crime, que leva ao vício, à morte prematura ou aos presídios abarrotados, onde os jovens (que deveriam estar se formando, construindo uma identidade social e se preparando para uma profissão que os levaria à realização pessoal) sofrem as piores torturas, físicas e emocionais. Torturas que só uma sociedade desumana, atrasada, cega e incompetente, permite que aconteçam.

É proibido proibir repetem muitos jovens universitários de hoje, ao lado de seus professores já não tão jovens, que cresceram exigindo liberdade sem a sua contrapartida que é a responsabilidade. Os jovens repetem o que lhes foi transmitido e se sentem heróis de uma história sem começo nem fim. Acostumados a receber quase tudo de graça, eles não sabem que a vida em sociedade é uma construção que exige esforços permanentes, trabalho árduo, tijolo sobre tijolo, dia após dia. Aliás, para eles e muitos de seus professores, a palavra “construção” não tem sentido, não tem peso nem valor. O que vale, nos dias de hoje, é a “desconstrução”. Que futuro eles terão pela frente?

 

Rosa Maria Custodio – out. 2016

Escritora/Jornalista


20/10/2016

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