Outro dia estava aqui, escrevendo, quando olhei casualmente pela vidraça da janela que fica ao lado do meu computador. Me deparei, um pouco atordoada, com uma névoa branca e pegajosa sobre a superfície do vidro, um filtro indesejado sobre a paisagem urbana. Resquício, quem sabe, da reforma recente no exterior do prédio, aliado à poluição cotidiana, essa que respiramos sem saber e que se abate sobre nós à noite, na forma daquela tosse irritante, sempre disposta a nos legar uma insônia desaforada.
Me entrou aquela vergonha de dona de casa coisa que não sou, mas de vez em quando, tenho ataques de e resolvi tomar cartas no assunto: pano de limpeza, álcool e vários jornais velhos. Sou das que aprendeu que vidro se limpa com essas coisas, embora o Facebook insista em me informar que é possível limpar vidros com Coca-Cola. Sei lá, nunca tentei, mas não duvido. Em todo o caso, acredito que cavalo se sobe só por um lado, daí o meu apego aos velhos ensinamentos caseiros.
Por vários minutos me dediquei à tarefa de tornar a vidraça transparente de novo. E como limpeza é meio que uma febre, da minha janela parti para a do quarto ao lado, maior, emperrada, e mais empoeirada do que a minha. De trilha sonora, o rádio informando o de sempre: roubos, corrupção, carro-forte, foragidos, quando é que o meu país vai ter de novo algo de positivo para contar? O pano umedecido de água e álcool ia rodando na ponta do braço, apagando a neblina suja e abrindo caminho para a luz e as cores. Quando terminei achei que ficou bonito, achei que a janela até parecia maior, com mais espaço para a paisagem de sempre, que pode se apresentar com todo o vigor e profundidade.
Dois passos atrás, sento na cama e olho. E a mente escorrega pelo velho vidro novo, e me dou conta de que junto com toda aquela poeira e manchas, junto com as migalhas da reforma e os excessos que embaçavam o vidro, havia apagado a memória dos pores de sol, das andorinhas estivais e o caminho das gotas das chuvas que desenharam mapas de aquíferos fugazes e lambuzaram de arco-íris o céu gris do Inverno passado quente Inverno esse, que antecipou um Verão seco e suave como poucos. Apaguei as sombras das nuvens em arco de que tanto gosto, mares flutuantes que nos assustam com suas cores escuras e suas dimensões de ciclope. Lustrei com gosto o que restava das noites de Lua Cheia, os eclipses que desafiam os olhos a não olhar o matemático bailado dos corpos celestes, do qual somos apenas espectadores. Poli até desaparecer os últimos resquícios das estrelas distantes, o passar dos aviões em sua rota de pouso e o inexplicável roteiro de pontos luminosos sem identidade. E o nascer dos anjos, que vejo em cada clarão de relâmpago. Ficou tudo no pano sujo, amassado e misturado, perdido para sempre.
Diante de mim, o vidro limpo. Pronto para mais luas, mais pores de sol, mais tempestades. Pronto para mais cores e mais horizontes, a amplidão do Tempo e a louca corrida da Vida.
Desliguei o rádio. Guardei as coisas. Tudo em silêncio, o silêncio quedo das casas vazias, as vidraças limpas e os corações sem sonhos.
Uma vidraça só está pronta para novos dias e noites quando temos a coragem de apagar dela as velhas imagens, sejam elas belas ou pegajosas. Ainda bem que limpar um vidro é fácil.
Já um país, é bem outra história.
27/02/2018
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Comentários:
Gostei muito! Parabéns! Ecilda Wmanski, Porto Alegre-RS27/02/2018 - 17:47
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Simone Saueressig
Simone Saueressig nasceu em Campo Bom (RS), em 1964. Professora de balé desde os dezoito anos, a autora também trabalhou como editora do suplemento infantil "Popinha" do Jornal NH, de Novo Hamburgo. Na década de 90, Simone morou na Espanha e neste período escreveu inúmeros contos infantis para o jornal "Ya", de Madri.
Atualmente, Simone tem vários títulos publicados para o público infantil e infanto-juvenil. Entre eles, destacam-se A Máquina Fantabulástica publicado há 20 anos, ininterruptamente pela Editora Scipione, e os livros O Rubi Ragank e A História do Rubi Ragank, publicados em 2012 pela Um Cultural.
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