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Música

Estranhamentos e fronteiras
Jéferson Dantas

O compositor, músico e escritor gaúcho, Vitor Ramil, conseguiu imprimir em seu ensaio A estética do frio uma metáfora conceitual vigorosa e necessária, principalmente, para os que moram na região mais ao sul do Brasil. Ramil não se reconhece identitariamente próximo aos que habitam os territórios contíguos à linha do Equador, neste diverso e desigual país-continente. Segundo o autor, o “frio [é] a metáfora capaz de falar de nós de forma abrangente e definidora, [simbolizando] o Rio Grande do Sul e [sendo] simbolizado por ele”.

Só é possível compreender tal metáfora olhando um pouco para as histórias regionais desse país. Após a independência política formal do Brasil na primeira metade do século 19, o imperador D. Pedro I impôs uma constituição outorgada (1824), a permanência do escravismo e a punição severa às províncias que desejassem o mínimo de autonomia política. Daí já se depreende o quanto foi difícil estruturar um Estado-Nação num país onde reinava o absolutismo monárquico e a opção clara pela economia agroexportadora, ou seja, a continuidade do modelo colonial em detrimento das nações industrializadas. Abalado por intensas críticas internas e tendo de abdicar o cargo em favor de seu filho D. Pedro II – então com apenas cinco anos de idade – e retornar à Portugal para garantir a sua coroação, o Brasil passou a ser governado por um sistema de regências. E é, justamente, o período regencial, o divisor de águas na história política e cultural do Brasil.

Como bem assinala o professor Manuel Correia de Andrade “o sentimento de brasilidade ainda era muito tênue e os problemas locais e provinciais eram bem mais preocupantes que os problemas propriamente nacionais”. Foi nesse contexto que a revolta farroupilha ganhou força, sendo até hoje a mais importante guerra civil travada em território nacional, quer pela sua duração (1835-1845), quer pela ameaça real que trouxe à unidade nacional. Para Andrade, o Rio Grande do Sul tem uma história sui generis, pois foi tardiamente povoada pelos portugueses, além de ter convivido com o litígio fronteiriço entre Portugal e Espanha. Esta verdadeira área de conflitos entre lusitanos e castelhanos demorou a ser solucionada, tanto no Rio da Prata como nas margens dos rios Uruguai e Paraná (território das Missões jesuíticas). Os rio-grandenses tinham com os castelhanos da região do Prata velhos desentendimentos. A imprecisão das fronteiras, ainda que bem definidas pelos tratados realizados pelos impérios ibéricos, não eram formalmente aceitas pelos habitantes acostumados a atravessá-las, a participar de peleas, já que possuíam propriedades dos dois lados da fronteira e manejavam rebanhos inteiros sem respeitá-las. O vaivém dos rebanhos causava atritos entre os “industriais do couro e de charque sediados no Brasil, na região de Pelotas, e na Argentina, em Buenos Aires” (BANDEIRA apud ANDRADE, 1999, p. 78).

Em linhas gerais, a revolta farroupilha, que também envolveu a província de Santa Catarina, foi ocasionada pela exploração fiscal, má administração e ausência de afinidade entre os presidentes da província e o povo gaúcho. Aliás, os presidentes das províncias eram costumeiramente alheios aos problemas locais que administravam, pois eram somente homens de confiança do poder central.

Nesta direção, Vitor Ramil não pretende em A Estética do frio definir com precisão a identidade do gaúcho ou teorizar amplamente sobre ‘qual identidade nacional temos’ e como ela se projeta no imaginário coletivo. Seria uma tarefa hercúlea, com mais indagações do que aproximações identitárias. Logo, Ramil está mais preocupado em estabelecer uma análise pontual e particular do que compreende ser o gaúcho, não propriamente aquele estereotipado, vulgarmente divulgado pela mídia. Mas aquele gaúcho urbano que se depara com os diversos brasis e que, de repente, no centro da sala, seminu, em pleno inverno do Rio de Janeiro, olha pela tevê os campos tomados pela geada, a neve na serra, e se dá conta de que precisa retornar a esse lugar-território. Foi o que aconteceu com Ramil. A partir dessa alegoria semântica (o frio como emblema do território), o compositor gaúcho passa a se reconhecer, decisivamente, naquele lugar. A introspecção criativa de Ramil é tributária, pois, desse lugar-território que dialoga, exaustivamente, com a língua hispânica, mas que ao mesmo tempo tem a contribuição cultural do imigrante alemão e italiano e, evidentemente, dos afrodescendentes. A musicalidade de Ramil é a confluência do regional com o urbano, traduzida principalmente na milonga, gênero musical apreciado pelos gaúchos e castelhanos, de caráter repetitivo, melancólico e reflexivo.

As fronteiras territoriais/culturais promovem diferentes suscetibilidades, algumas animosidades e representações diversas do que chamamos Brasil. O estranhamento está incorporado ao modus vivendi do gaúcho, que se construiu, historicamente, em meio a batalhas contra o governo imperial, estando sua figura invariavelmente associada à pecha de subversivo, arrogante e destemido. A sensação de Ramil, compartilhada, certamente, por milhares de rio-grandenses, deve ser a mesma de todos os brasileiros desse território: o que é ser brasileiro na quentura do Oiapoque até às gélidas invernadas no Chuí?

Jéferson Dantas é Historiador, ensaísta, letrista e compositor. Doutorando em Educação (UFSC). E-mail: clioinsone@gmail.com
 

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Manuel Correia. As raízes do separatismo no Brasil. São Paulo: UNESP/EDUSC, 1999.
RAMIL, Vitor. A Estética do Frio: conferência de Genebra. Porto Alegre: Satolep, 2004.


09/01/2012

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