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Literatura

A cultura e a tirania do consumo
Cássio Pantaleoni

O grande poeta grego Ésquilo, em sua magnífica tragédia intitulada Prometeu, promoveu, através das palavras desse titã, a leitura de nossa condição humana desde o início de nossa história até o momento em que descobrimos a força da razão e do pensamento.

Em certo momento, Prometeu fala: “Antigamente, os homens tinham olhos para não ver, eram surdos à voz das coisas, e (...) agitavam ao acaso a duração da sua existência na desordem do mundo”.  E mais adiante, acrescenta: “Faziam tudo sem nada conhecer. Até o momento em que [dei] a eles a ciência do levantar e do pôr dos astros [o tempo]. Depois veio a dos números, [ciência] de todo o conhecimento. E as letras que se juntam, memória do universo, obreira do labor humano, mãe das artes” 

Observando o que se instaura em nossa cultura, especialmente a cultura brasileira, o discurso de Prometeu mostra-se como recurso precioso para interpretarmos corretamente  o que ora acontece em nosso tempo. Mas precisamos vê-lo invertido.

Prometeu nos recorda dessa luta que a humanidade travou para sair das trevas rumo a luz das possibilidades que o conhecimento proporciona. Sutilmente, ele sugere  que nosso domínio sobre a natureza se dá através das noções de tempo, de medidas e das possibilidades do sentido dadas pela linguagem.

Imaginemos agora, de modo invertido, uma caminhada que se inicia no ponto máximo do domínio dessas três noções. Imaginemos a noção do tempo relativizada, em um viés subjetivo, que serve apenas aos nossos propósitos, que se desocupa do tempo que precede a nossa particular existência e se despreocupa do tempo que virá após a nossa morte, ou seja, o passado e o futuro onde “eu” não estou incluído. Imaginemos ainda a noção de medida encurtada apenas para aquilo de que trata a vida prática, o nosso agir inadvertido no mundo. E finalmente, imaginemos a noção das possibilidades da linguagem apenas como recurso para o “ter”. Para onde essa caminhada nos levaria?

Pois talvez o que observamos como manifestação cultural em nossos dias seja consequência desse percurso. Explico. Há, mesmo entre a suposta “elite” cultural, uma predisposição para fomentar a mensagem de “parem de exigências, sejam menos seletivos e consumam mais”. Essa predisposição se dá pelo abandono (necessário?) das tentativas de “elevar” ou “enobrecer” os consumidores culturais. Como diz Zigmunt Bauman, professor emérito da Universidade de Varsóvia: “A cultura hoje é constituída de ofertas (...) Esta é uma sociedade de consumidores, e, tal como o resto do mundo, vemos e experimentamos o mundo como consumidores”.

Em uma sociedade em que todo o produto corre o risco de ser descartado ou ignorado se não encontrar o seu consumidor, a regra é fazer tudo o mais simples possível, prometendo facilidades. O celular substituiu o telefone fixo porque tornou mais fácil se comunicar a qualquer momento. A cafeteira com cartuchos de café está conquistando espaço porque simplifica o modo como se faz café. E a comida pronta então? Nem é mais preciso saber cozinhar.

Na sociedade de consumo, o comportamento predominante – o nosso comportamento – não foge à regra. Assim, o próprio professor na sala de aula, por exemplo, se esforça em tornar fácil a sua lida. Ele age de modo a não ser rejeitado. Ele sugere leituras fáceis, para que os alunos não descartem a leitura. Ele oferece exercícios fáceis. Dá menos dever de casa. Ele oferece a facilidade para que o aluno avance em seu currículo escolar. Ele está ali para agradar pais e filhos.   O ensino transformou-se em um consumível.

 Os escritores, por sua vez, não fogem a regra. Para garantir que sejam consumíveis eles se engajaram na produção de texto fáceis, com linguagem aproximada do seu público leitor, para evitar ser rejeitado.

Não precisamos ir tão longe nessa explicação. Voltemos à Prometeu e a inversão da caminhada. Como é possível promover profundidade e reflexão em uma sociedade de consumo que ignora a história? Como é possível falar de algo que não esteja centrado no “eu”? Como é possível promover o uso da linguagem para a apreensão do sentido do “ser” quando tudo o que se quer é o “ter”

O que me parece ruidoso em todo esse momento cultural é essa incontornável superficialização da cultura, uma circunstância que vive o agora e ignora o passado e o futuro, que ignora o raciocínio lógico porque aspira não sofrer, que encurta a linguagem para não ter o trabalho de interpretar. Que mundo estamos construindo? 

Eu costumava pensar em arte como uma trilha para a libertação crítica, como se o artista pudesse ser aquela personagem do Mito da Caverna platônico e nos conduzir para a luz. Eu costumava pensar em arte como algo perene, como um ponto de exclamação eterno, que não podia ser explicada como “eu tenho, você não tem”. Precisamos admitir: estamos diante de um “fenômeno”. Não no sentido de algo maravilhoso ou espetacular, mas como um grande descuido. Esse fenômeno se manifesta na ditadura midiática, no comportamento predominante nas escolas (seja aluno ou professor), nas conversas do cafezinho, nas mídias sociais e (pasmemos!) na produção literária.

Se déssemos voz à Prometeu novamente, diante dessa nova miséria para a qual o homem se encaminha, a miséria das facilidades, a miséria dessa danação cultural, talvez ele falasse sobre outra tirania, uma tirania mais dura e amputadora – a tirania do consumo –, e suas palavras seriam: “Agora, os homens tem olhos para não ver, são surdos à voz das coisas, e (...) agitam ao acaso a duração da sua existência na desordem do mundo”.


09/01/2012

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Comentários:

Parabéns pelo seu inteligente texto.
Ecilda Simões Symanski, Porto Alegre-RS 15/01/2012 - 11:57
Boa Tarde, Cassio. Sensacional o seu artigo. É bem por aí hoje,a realidade de nossa existência. O grande poeta grego Ésquilo, em sua magnífica tragédia intitulada Prometeu está tão ou mais moderno do que nunca.
Vera Lucia Cabral Hermenegildo, campinas - SP 10/01/2012 - 18:13
Boa Tarde, Cassio. Sensacional o seu artigo. É bem por aí hoje,a realidade de nossa existência. O grande poeta grego Ésquilo, em sua magnífica tragédia intitulada Prometeu está tão ou mais moderno do que nunca.
Vera Lucia Cabral Hermenegildoo, Campinas/SP 10/01/2012 - 16:23

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  Cássio Pantaleoni

Cássio Pantaleoni nasceu em agosto de 1963, em Pelotas, Rio Grande do Sul. Escritor, Mestre em Filosofia pela PUCRS e profissional da área de Tecnologia da Informação. Vencedor do II Premio Guavira de Literatura, na categoria conto, em 2013, com o livro “A sede das pedras”; finalista do Jabuti de 2015 com a novela infanto-juvenil “O segredo do meu irmão”. Segundo lugar na 21a. Edição do Concurso de Contos Paulo Leminski; duas vezes finalista no Concurso de Contos Machado de Assis, do SESC/DF; duas vezes finalista no Premio da Associação Gaúcha de Escritores (AGES). Desenvolve workshops sobre leitura, técnicas de escrita ficcional e filosofia aplicada à literatura. Obras Publicadas: “De vagar o sempre” – Contos – 2015, “O segredo do meu irmão” – Novela infantojuvenil – 2014, “A corda que acorda” – Infantil – 2014, “A sede das pedras” – Contos – 2012, “Histórias para quem gosta de contar histórias” – Contos – 2010, “Ninguém disse que era assim” – Novela – 2006, “Os despertos” – Novela – 2000.

cassio@8inverso.com.br
www.sextadepalavras.blogspot.com
https://www.facebook.com/cassio.pantaleoni.9


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