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Literatura

A gangue dos escribas gambás
Lucio Saretta

Pedras de gelo trepidam com o uísque que cai como uma cascata no copo. A mão trêmula do escritor empunha a pena com sofreguidão, enquanto o malte cor de havana dilui-se lentamente. Palavras vagabundas nascem sobre a folha em branco, tecendo uma trama delirante. Em um momento fortuito a mão apanha a bebida, levando-a até a boca do criador. Este suga o líquido em pequenos goles, balançando as pedras de gelo que batem no vidro do recipiente. Sobre a escrivaninha, a luz tênue da vela dança por entre a obscuridade do quarto. É noite alta, um instante aterrador dentro da madrugada, em que nem mesmo malandros e marginais ousam caminhar pelas ruas. Refém dos próprios instintos, quem reina nesse horário nauseabundo e fantasmagórico é um outro tipo de bando. Um bando que dizima a lógica e estabelece opiniões, constrói romances, poesias e ensaios brilhantes, ditando os rumos da sociedade e do próprio pensamento humano. Uma canalha de patifes e covardes, lindos loucos e galantes aventureiros das letras. Uma gangue de escribas gambás, trabalhando freneticamente nos gabinetes profundos da alma.

Quando decidiu sair do escritório, essa verdadeira horda de pinguços intelectuais tomou de assalto a mais conceituada instituição do planeta, ou seja, aquela que concede o prêmio Nobel de Literatura. Ao menos no que diz respeito a escritores norte-americanos, a estatística é impressionante. Dos sete ianques laureados com a distinção através da história, cinco eram alcoólatras. Juntos, Sinclair Lewis, Eugene O’Neill, William Falkner, Ernest Hemingway e John Steinbeck consumiram quantidades faraônicas daquela água que, como diz a gíria popular, “passarinho não bebe”.

Qual seria o motivo dessa sede desvairada, desse impulso suicida entre a classe? Por que sinistra razão tantos mestres da escrita, após terem atingido os píncaros da beleza através da arte desceram ao degrau mais baixo da condição humana, degradando e aniquilando a sua saúde física e mental? Poderíamos supor que o isolamento necessário para produzir livros leve o escritor a buscar consolo nas garrafas. Afinal, sabemos o quão exaustivo costuma ser o ofício de parir um texto, uma frase, ou até mesmo uma única e simples palavra. A natureza da atividade é insociável, mas não justifica, por si só, a mazela da dependência. Obviamente existe o componente da extravagância típica do artista e a sua busca incessante pela inspiração, pela transgressão de conceitos pré-estabelecidos, pela descoberta de si mesmo. Ou, quem sabe, pela fuga de si mesmo...

Se levantarmos o manto de olvido que cobre a antologia de grandes escritores brasileiros, encontraremos a figura atormentada de Lima Barreto. Bebum de características doentias, o autor carioca teve que enfrentar ainda o escolho do preconceito racial e de tragédias familiares em sua inglória caminhada no universo literário.  Sorvendo seu trago na sombra fria do ostracismo, em uma esquina qualquer da vida, Lima tantas vezes deixou-se levar pela falsa alegria de um pifão. De pileque em pileque, envolto pela amnésia etílica e ressacas fulminantes, o pobre homem terminou cavando a própria sepultura. Um dos herdeiros de Lima no posto de gênio bêbado das letras, Paulo Mendes Campos produziu crônicas de teor magnífico, ombreando-se com o gigante Rubem Braga. Nos botequins de Ipanema, a presença de Paulinho, como era chamado carinhosamente pelos amigos, era uma constante. No princípio um sujeito querido nas rodas de bate-papo, este ébrio incorrigível, com o passar dos anos, teve a entrada proibida nos bares da cidade, enfrentando um declínio cruel e irreversível até o final dos seus dias.

Assim como na história de Dr. Jeckyl e Mr. Hyde, parece que existe dentro de cada garrafa de vinho, rum, ou gim, uma espécie de poção mágica, que costuma revelar o verdadeiro caráter, ou a falta dele, dos indivíduos. Cavalheiros de respeito e bons costumes podem transformar-se em criaturas ignóbeis e desprezíveis, capazes de atos de terrível vilania. Talvez tenha sido justamente esta a metáfora proposta por Robert Louis Stevenson, quando compôs a obra no século dezenove. Investigando nas enciclopédias eletrônicas de hoje não foi possível, contudo, precisar se Stevenson era ou não um bebedor contumaz.  

Mistérios de insanidade, morte e fantasia. Como em um conto de Edgar Allan Poe, a existência de certos autores permanece envolta em questões de difícil solução. O próprio Poe, aliás, foi um alcoólatra da mais fina estirpe, que viveu o pesadelo do vício de forma intensa e assustadora. Navegando em mares de trago e loucura, Poe poderia ser considerado o líder dessa malta de talentosos escritores que sucumbiram dramaticamente ao poder da bebida. A sua produção impecável, afinal, teve na boemia uma companheira perfeita, com suas brumas de veludo a esconder a verdade e a mentira, a dor e o prazer, o sublime e o vulgar.


11/01/2013

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Comentários:

Pois é Lucio. Sempre me perguntei por que alguns notáveis se perderam no vício alcoólico, no suicídio e no submundo dos prostibulos. Mas há os que não sucumbiram, porém, além de notívagos, eram pessoas que apresentavam-se cheias de saber mas vazias de viver. Há uma busca do eterno entre os que se deitam na prática da boa lavra e quando descobrem-se velhos e passados, não resistem e morrem infames, debulhando suas mágoas que muitas das vezes vazaram em letras no papel. Bueno, tchê, que essa dor atrós não nos consuma, para que nosso texto não vire privada de nosso vomitório de despeito, medo e dor de não ser reconhecido ou conhecido.
Marcos de Andrade, Passo Fundo/RS 27/01/2013 - 00:01

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