Pedras de gelo trepidam com o uísque que cai como uma cascata no copo. A mão trêmula do escritor empunha a pena com sofreguidão, enquanto o malte cor de havana dilui-se lentamente. Palavras vagabundas nascem sobre a folha em branco, tecendo uma trama delirante. Em um momento fortuito a mão apanha a bebida, levando-a até a boca do criador. Este suga o líquido em pequenos goles, balançando as pedras de gelo que batem no vidro do recipiente. Sobre a escrivaninha, a luz tênue da vela dança por entre a obscuridade do quarto. É noite alta, um instante aterrador dentro da madrugada, em que nem mesmo malandros e marginais ousam caminhar pelas ruas. Refém dos próprios instintos, quem reina nesse horário nauseabundo e fantasmagórico é um outro tipo de bando. Um bando que dizima a lógica e estabelece opiniões, constrói romances, poesias e ensaios brilhantes, ditando os rumos da sociedade e do próprio pensamento humano. Uma canalha de patifes e covardes, lindos loucos e galantes aventureiros das letras. Uma gangue de escribas gambás, trabalhando freneticamente nos gabinetes profundos da alma.
Quando decidiu sair do escritório, essa verdadeira horda de pinguços intelectuais tomou de assalto a mais conceituada instituição do planeta, ou seja, aquela que concede o prêmio Nobel de Literatura. Ao menos no que diz respeito a escritores norte-americanos, a estatística é impressionante. Dos sete ianques laureados com a distinção através da história, cinco eram alcoólatras. Juntos, Sinclair Lewis, Eugene O’Neill, William Falkner, Ernest Hemingway e John Steinbeck consumiram quantidades faraônicas daquela água que, como diz a gíria popular, “passarinho não bebe”.
Qual seria o motivo dessa sede desvairada, desse impulso suicida entre a classe? Por que sinistra razão tantos mestres da escrita, após terem atingido os píncaros da beleza através da arte desceram ao degrau mais baixo da condição humana, degradando e aniquilando a sua saúde física e mental? Poderíamos supor que o isolamento necessário para produzir livros leve o escritor a buscar consolo nas garrafas. Afinal, sabemos o quão exaustivo costuma ser o ofício de parir um texto, uma frase, ou até mesmo uma única e simples palavra. A natureza da atividade é insociável, mas não justifica, por si só, a mazela da dependência. Obviamente existe o componente da extravagância típica do artista e a sua busca incessante pela inspiração, pela transgressão de conceitos pré-estabelecidos, pela descoberta de si mesmo. Ou, quem sabe, pela fuga de si mesmo...
Se levantarmos o manto de olvido que cobre a antologia de grandes escritores brasileiros, encontraremos a figura atormentada de Lima Barreto. Bebum de características doentias, o autor carioca teve que enfrentar ainda o escolho do preconceito racial e de tragédias familiares em sua inglória caminhada no universo literário. Sorvendo seu trago na sombra fria do ostracismo, em uma esquina qualquer da vida, Lima tantas vezes deixou-se levar pela falsa alegria de um pifão. De pileque em pileque, envolto pela amnésia etílica e ressacas fulminantes, o pobre homem terminou cavando a própria sepultura. Um dos herdeiros de Lima no posto de gênio bêbado das letras, Paulo Mendes Campos produziu crônicas de teor magnífico, ombreando-se com o gigante Rubem Braga. Nos botequins de Ipanema, a presença de Paulinho, como era chamado carinhosamente pelos amigos, era uma constante. No princípio um sujeito querido nas rodas de bate-papo, este ébrio incorrigível, com o passar dos anos, teve a entrada proibida nos bares da cidade, enfrentando um declínio cruel e irreversível até o final dos seus dias.
Assim como na história de Dr. Jeckyl e Mr. Hyde, parece que existe dentro de cada garrafa de vinho, rum, ou gim, uma espécie de poção mágica, que costuma revelar o verdadeiro caráter, ou a falta dele, dos indivíduos. Cavalheiros de respeito e bons costumes podem transformar-se em criaturas ignóbeis e desprezíveis, capazes de atos de terrível vilania. Talvez tenha sido justamente esta a metáfora proposta por Robert Louis Stevenson, quando compôs a obra no século dezenove. Investigando nas enciclopédias eletrônicas de hoje não foi possível, contudo, precisar se Stevenson era ou não um bebedor contumaz.
Mistérios de insanidade, morte e fantasia. Como em um conto de Edgar Allan Poe, a existência de certos autores permanece envolta em questões de difícil solução. O próprio Poe, aliás, foi um alcoólatra da mais fina estirpe, que viveu o pesadelo do vício de forma intensa e assustadora. Navegando em mares de trago e loucura, Poe poderia ser considerado o líder dessa malta de talentosos escritores que sucumbiram dramaticamente ao poder da bebida. A sua produção impecável, afinal, teve na boemia uma companheira perfeita, com suas brumas de veludo a esconder a verdade e a mentira, a dor e o prazer, o sublime e o vulgar.
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