Foto de Fernando Pires
“O que pode o pensamento contra todas as forças
que, ao nos atravessarem, nos querem fracos, tristes, servos e tolos?”.
Gilles Deleuze
SOMOS ARTÍSTAS EXILADOS. É como se um círculo de giz
traçado na circulação de forças — nas igrejinhas
cênicas e na cultura da sociedade do Estado do Rio Grande do Sul —,
reservasse ao grupo Falos & Stercus o espaço do Hospital Psiquiátrico
São Pedro como morada única. O Falos foi puxado e empurrado por
todos os ventos e confinado, não obstante, a um percurso milimétrico,
como um trapezista sobre um único fio, equilibrando-se em meio á
tormenta e por cima do abismo. E a partir daí, nesse espaço do
Hospital Psiquiátrico São Pedro, tornou-se a tela de projeção
intensíssima da nossa sociedade. Poderia ser pior? Sim, poderia ser o
necrotério! Quando chegarmos a isso será uma alusão de
que a sociedade é um cadáver. Mas por enquanto vamos ficar nesse
espaço de loucura.
O Falos & Stercus mantém uma postura que o envolve em polêmicas.
Leva pessoas a idolatrar o trabalho, debater sobre, prendê-los, tecer
comentários difamatórios em torno de sua produção
e censurar sua obra. O teatro do Falos não fica de maneira alguma simplificado
pelo fato de que seus integrantes deploram o modus operandi do teatro brasileiro,
por razões tanto políticas como pessoais. No entanto é
possível aprender observando a ação e a obra do grupo no
contexto e nos meios dos quais surgiu.
Ponto de referência vital nas artes cênicas a partir de 1990, com
infatigável ardor, o Falos & Stercus dedicou-se a esse espaço
confinado do Hospital Psiquiátrico São Pedro desde 1999, o elevando
ao seu extremo no início de 2001, ano em que se compraz a divulgar a
estréia do espetáculo “In Surto”. A noção
da intervenção cênica do Falos vai redundar em uma forte
influência sobre vários grupos de teatro de Porto Alegre, os quais
vão se alojar também no Hospital Psiquiátrico São
Pedro nos anos seguintes. Fato que divulgou esse movimento artístico
no Brasil.
Para realizar um olhar sobre os olhares é necessário contextualizar
que há anos a cidade de Porto Alegre e o Estado do Rio Grande do Sul
passa por um processo de desconstrução. O Grupo Falos & Stercus
viveu entre 2000 e 2002 em diversos espaços, no Armazém Cinco
do Caís do Porto, no Hospital Psiquiátrica São Pedro, na
Ilha da Casa da Pólvora, no Memorial do Rio Grande do Sul, no Castelo
do Alto da Bronze e na Usina do Gasômetro. No ano de 2002, governo Rigotto,
o grupo Falos & Stercus foi expulso do Armazém Cinco do Cais do porto,
pois o Secretário de Cultura, na época o Sr. Roque Jacoby, decidiu
alugar os armazéns para realizar leilões de bois e vacas. A grande
ambição de Roque Jacoby, naturalmente tratava-se de um enigma
que postulara a reforma cultural do Estado do Rio Grande do Sul. Esse capricho
e essa diligência de dedicação insana, mais tarde culminaria
na falência do sistema LIC – Lei de Incentivo a Cultura.
Depois de historiar o nascimento desse espaço do teatro no Hospital
Psiquiátrico São Pedro. O que mais intriga é a curiosa
relação da narrativa do espaço da arte na sociedade. A
atmosfera ameaçadora e misteriosa, dos pavilhões cinco e seis,
possui um aspecto grotesco, que invariavelmente instiga a hilariedade, mas é
uma síntese de característica ambígua de horror e humor.
A vida e a arte no Brasil, muitas vezes pode ser traduzida por um sentimento
de ser estrangeiro em nosso próprio país. Existe a questão
de fronteira, e não são apenas físicas, mas sim culturais
na complexa geografia de uma sociedade Playbeck.
Em 2008, o governo Yeda Crusius manda os grupos de teatro deixarem os pavilhões
cinco e seis do Hospital Psiquiátrico São Pedro. Dias de guerras
e contradições. Relato dispare que a mídia vem acompanhando
com todos os aspectos que envolvem o Estado do Rio Grande do Sul num conflito
de desmanche cultural e artístico. O momento ganha um destaque: a presença
de um líder militar, um generalíssimo é nomeado Secretário
de Segurança em um regime democrático. Um militar da importância
de um general, com palavras de ordem tão eloqüentes entrando no
jogo político? Bem, talvez agora a classe média possa fazer de
conta que tem segurança para comprar a sua droga em paz.
Mas voltemos à questão — Ler os jornais de hoje é
uma arte de interpretação dos sentidos ocultos. Chega a ser uma
atividade lúdica. Entretanto as notícias surgem com toda força
guerreando a nossa provisória percepção — Como afirmei
antes de tudo, somos artistas e não figuras com um espírito exaltado,
desprovido da fleuma e do equilíbrio necessários a criar em um
hospício. A loucura e o terror como forma de controle social continua
sendo a grande arma do poder de uma cultura de política brasileira. E
a sociedade não economiza aplausos e manifestações de apoio.
Qual é o alvo? Que manobra têm os de cima para submeter os de
baixo? A economia brasileira produz muita riqueza e uma massa enorme de excluídos
é mantida calada sobre o cotidiano. A direita está aí,
viva e dominante. Sua ideologia social é bem maior do que pensávamos.
À esquerda esta liquecendo? Ou Liquidada? Vivemos numa era em que o anarquismo
é financiado pela Petrobras. Os resultados das últimas eleições,
municipais e estaduais, nos revelam que a sociedade gaúcha nas suas entranhas
faz o mesmo movimento. A atual composição política do Rio
Grande do Sul é a expressão do nosso modus vivendi: mudar para
manter.
O trabalho desenvolvido pelo grupo Falos & Stercus abre o reino do incomensurável.
Descerrando a cortina do medo, do horror, do terror, da dor e descobrindo a
melancolia infinita que é incutida nos homens e mulheres do Brasil. Sou
categórico, nesse contexto, ao exprimir uma concepção artística
centrada no teatro, deixamos transparecer a nossa personalidade multifacetária,
eclética de autores, que contribui de diversas maneiras para a reflexão
e a história, não somente do teatro, como da arte em geral e da
sociedade. Essa influência é evidente na composição
da nossa obra. Por obra entendo trabalho, construção, consistência,
produto, comunicação, estrutura. Obra é a materialização
de trabalho, a forma de inserção do homem no espaço de
inauguração de uma nova história.
Não podemos prever como viável a conjuntura da correlação
política interna dos governos. Entretanto, sua maior força reside
em uma base social relativamente grande que comunga ideologicamente com o pensamento
reacionário — a cidadania efetiva é de poucos.
A passividade do morto sem morte é um niilismo estratégico de
uma benevolência. O esquecimento é um repouso. Uma operação
afetiva silenciosa e cansada que faz emergir um implícito de um crime
de estratégia mundana. O que nos cansa é procurar (sem encontrar)
o nosso lugar. O fôlego é encontrar formas de enfrentar o crescimento
dessas forças, mas o artista outsider tem mostrado uma capacidade de
sobrevivência estupenda. A mesma capacidade que os conservadores têm
de se manter no poder.
Suave, hostil e tirânica sociedade de ventríloquos: abandonem
certas conversações e nos proporcionem um pouco de possível,
se não nós sufocamos. O pensamento jamais foi questão de
teoria, de estatística, mas de vida. A trajetória da sociedade
pode ser colocada por inteiro sob o signo de suas conversações.
A sociedade não é uma potência. Não é uma
potência porque têm grandes batalhas interiores risíveis
(idealismo-realismo-reacionarismo, etc.). Não sendo uma potência,
a sociedade não pode empreender uma batalha contra as potências
(as religiões, os Estados, os partidos, o capitalismo, a ciência,
o direito, a opinião publica, etc.). Não pode falar com elas,
nada têm a lhes dizer, nada a comunicar. Os resultados são a miséria
e o espólio.
A verdade é que se convive com desigualdades econômicas, sociais
e culturais que não poderíamos aceitar como viável num
regime democrático. Somente a confrontação transparente
com os poderes corporativos, causas reais da deterioração humana,
pode pôr um ponto final a esta lógica genocída e reconciliar
uma sociedade civil desmoralizada. Se não, ventríloquos, continuem
de joelhos!
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