O poeta Sidnei Schneider lançou esta semana, em Porto Alegre, o seu
segundo livro de poesias. “Quichiligangues”, editado pela Dahmer (pela
qual, em 1999, também publicou “Plano de Navegação”),
com ilustrações e capa do artista plástico Fabriano Rocha,
o livro reúne 17 poemas que tratam do enlace amoroso à luta de boxe.
Formalmente, o erudito, o popular e contemporâneo se cruzam para abarcar
aspectos da cultura grega trazidos para a contemporaneidade, homenagear o poeta
grego Kaváfis e metaforizar sentimentos universais sob a temática
da água – rio, oceano, onda, tina, enchente, chuva. Abordando a contradição
de quem tem a visão mas não vê (no emblemático poema
“Tirésias”) e o desfazimento das certezas (“Prometeu”),
duas das temáticas mais fortes do livro, “Quichiligangues”
deixa no paralelepípedo da nossa memória a pergunta “Quem
sabe, sabe o quê?”
No breve bate-papo a seguir, Sidnei fala um pouco sobre este novo livro
e as (in) significâncias da poesia e da arte.
“Quichiligangues”, de onde veio esse título? Parece-me
um neologismo.
É uma palavra já existente na língua portuguesa. Um dos
meus dicionários acabava caindo sempre na página que a continha.
Achava isso muito curioso. Ela tem um balanço, uma cadência, parecido
assim com paralelepípedo, que também é uma palavra que
dança. Vem da língua banto, segundo o compositor Nei Lopes, estudioso
das línguas africanas, e pode ser escrita também com xis. O sentido
dela está ligado a insignificâncias, ninharias. No fundo, é
uma brincadeira irônica, tentativa de chamar a atenção para
o gênero poesia, que tem tido pouca atenção crítica,
nem para o bem nem para o mal, da grande imprensa. Enfim, tento tirar do ostracismo
uma palavra saborosa da nossa língua.
E tem algum poema com esse título ou essa temática?
Não, o título procura apenas enfeixar esse conjunto de poemas,
dar significado às minhas insignificâncias.
O nome sintetiza o projeto do livro, a temática? Há um
fio condutor que seria falar das coisas pequenas, onde se encontra o poético,
as quinquilharias, à maneira de um Manoel de Barros ou Leminski?
Eu não me nego nem ao pequeno nem ao grande: Como fugir ao mínimo
objeto, ou recusar-se ao grande?, perguntava Drummond. Eu lembro do Vinicius
de Moraes, que fez um poema ao ver a sombra das pernas de um mosquito numa página
em branco, e viu ali uma lira. Uma minúcia onde se encontra o poético.
E a poesia pode tratar disso, de um detalhe qualquer, uma minúcia que
reflete o todo, ou então abarcar uma coisa enorme, a história
de um país ou de um continente, por exemplo. O importante é que
o universal e o particular se articulem no poema. A Jane Tutikian, que assina
as orelhas, pegou bem o espírito do livro ao apontar os fios que o ligam.
Alguns poemas fazem uma ponte com a cultura grega, não para falar daquela
período e suas histórias, patrimônio da humanidade, mas
para trazer reflexões sobre a nossa época. Por outro lado, sempre
tive interesse por tudo que remete à água, o que já aparece
no meu livro anterior, Plano de Navegação. Em Quichiligangues
encontra-se o rio universal que precisa ser atravessado, a tina de água
quente onde se realiza o encontro amoroso, a enchente que pode trazer a morte.
E há algo ligado ao aspecto de ter a visão e não ver, ou
o seu simétrico, que é ser cego e ao mesmo tempo sábio,
como o mitológico Tirésias, título de um dos poemas. Há
o tema da música, em instrumentos menos óbvios como o trombone
e o bandônio, que é como meus avós músicos se referiam
ao bandoneon. Tudo que trate da vida humana me interessa, do amor à luta
de boxe, presente em Os Boxeadores.
E como foi o trabalho de seleção e edição
dos poemas?
O mais difícil pra mim é selecionar poemas. A necessidade de
escrever me leva a transformar quase tudo em poema ou conto. Escrevo muito e
apresento pouco. Então a seleção é sempre trabalhosa.
Levo quase um ano para montar um livro, mesmo um como esse que tem poucos poemas.
E isso não quer dizer que ele seja bom. É apenas a minha seleção,
quem vai julgar são os leitores e a severa crítica do tempo.
Comenta pra mim as epígrafes do Manuel Bandeira e do Guiraut
de Borneill. Na do Manuel Bandeira há uma reflexão sobre as facetas
da realidade e da imagem da realidade (“O arranha-céu sobe no ar
puro lavado pela chuva/ E desce refletido na poça de lama do pátio./
Entre a realidade e a imagem, no chão seco que as separa,/ Quatro pombas
passeiam”). E na do Guiraut há o anuciar de uma aurora (“E
logo será aurora”).
As quatro pombas que passeiam entre a realidade do arranha-céu e a
sua imagem refletida na poça dágua representam a própria
poesia. Essa é a minha leitura do poema do Bandeira. Ele fala da realidade
e da imagem da realidade, um símbolo, uma palavra, enfim a coisa que
está refletida na poça da água. Mas entre a realidade e
seu reflexo, que pode ser visto como o reflexo artístico ou lógico
- pois algum liame sempre terá com a realidade – ele coloca quatro
pombas passeando. E acho que essas pombas têm muito a ver com a poesia.
Para mim pelo menos, a poesia é uma espécie de embate com o real,
um embate direto, não inteiramente racionalizado, com o real. Inclusive
é interessante observar que a poesia é anterior ao pensamento
lógico. O pensamento lógico lá nos gregos é uma
derivação, um desvio da linguagem poética. Então,
ao nível da consciência, muitas vezes não se tem completamente
o que o poema está dizendo. A poesia existe nessa faixa intermediária
entre a realidade e a imagem, seja essa imagem artística ou racionalização.
A outra epígrafe vem dos trovadores provençais, de uma época
em que a música e a poesia ainda não estavam separadas. Esse “e
logo será aurora” tem a ver com minha produção noturna
e com o processo de mudança ininterrupta, um novo dia a cada dia, essa
transformação constante de tudo e de todos. Enfim, a vida recomeçando
sempre.
E não há também uma referência a uma esperança
de mudança de uma realidade social difícil? Não há
essa intenção de conotação social na citação
dessa epígrafe?
Pode-se fazer uma leitura próxima a isso. Embora me pareça que
uma certa colocação poética anterior, ali dos anos 50 e
60, quando muitos poemas esperavam o futuro, não seja a mais adequada.
Esse futuro a gente não espera. Ou se trabalha para construí-lo
ou ele não vem.
Queria que você falasse sobre o poema “Tirésias”
e também sobre o significado da poesia e da arte. A poesia – a
literatura em geral – consegue iluminar a realidade, provocar reflexão,
enfim, sacudir o marasmo da vida cotidiana?
Nesse poema há uma espécie de empáfia de alguém
que se dirige a um cego andrajoso. Quer saber como é a vida do cego,
mas vem com uma superioridade muito grande. E no fim, talvez seja ele o mais
cego dos dois. O poema é uma brincadeira com essa situação.
No plano geral, a literatura e a poesia mexem, sim, com as pessoas. A arte tem
um papel decisivo. Talvez nem todo mundo goste de poesia ou não tenha
tido a oportunidade de conhecer poesia mais profundamente. E que ninguém
se sinta obrigado a isso, como por vezes acontece na escola, o que impede o
interesse. Mas se a gente pensar em perspectivas históricas, a arte sempre
teve o papel de ajudar o ser humano a viver. Fortalece aquilo que dentro de
nós nos liga uns com os outros. Torna o mundo um lugar habitável
para a espécie e humaniza o próprio ser humano. Também
por isso, a poesia e a arte são tão críticas.
Sim. A figura do poeta quase sempre me provoca uma indagação:
o poeta é o cara que faz a crítica do ser humano e do mundo sempre
ou sintetiza, capta (naquele sentido de ser a “antena da raça”)
valores essenciais da humanidade?
Eu não penso o poeta como alguém que dita regras. Mas alguém
que dispõe muitas dúvidas, que trabalha no desfazimento das certezas.
A poesia no fundo é uma indagação do mundo e de nós
mesmos, do coletivo humano, da nossa experiência sobre a terra.
Com relação à forma dos poemas, como foi trabalhada
a questão forma e conteúdo do “Quichiligangues”?
Quando estou escrevendo um poema procuro ficar bastante atento a como ele
está saindo. Procuro aproveitar a coisa intuitiva da criação,
mas trabalho muito o poema. Busco atingir a forma que melhor expresse o seu
conteúdo. Por isso vario muito a forma. Busco-a em toda a história
da literatura que me é dado alcançar; em um ouvido atento para
oralidade, não só a oralidade do que se fala na rua, mas em termos
de poesia popular, recente ou medieval; e também num olhar reflexivo
sobre a poesia contemporânea, do século vinte para cá, que
é o nosso presente. Já joguei muito napalm na palavra, seguindo
a senda do poeta adraugnav, que é vanguarda de trás para frente,
principalmente no meu primeiro livro artesanal, de 1992. Hoje estou muito mais
amplo, posso usar a terza rima dantesca, como no poema “Elegia da cantora
de ópera”, que a exigia, ou tentar experiências raras, como
a nasalização do verso, pouco conhecida. E tudo isso de uma maneira
muito particular e pessoal, é claro.
Entrevista publicada originalmente no Jornal Vaia.
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