Nos primeiros dias de novembro, Ronald Augusto esteve em Juiz de Fora para falar
sobre o seu trabalho na UFJF (II Colóquio Culturas e Diásporas Africanas).
Na oportunidade, concedeu entrevista ao jornalista Douglas Resende do diário
O Tempo, de Belo Horizonte, que reproduzimos aqui.
Além de poeta que tem seus versos publicados no papel, você
é músico e letrista. Uma coisa influencia a outra? Ou são
produções separadas?
Tenho uma vida dupla. Mas a vivo sem grandes traumas. Não misturo as
duas formas de arte. Entretanto, não obstante a conjunção
entre poesia e música seja uma realidade estética possível,
decidi não enveredar por esse caminho. Para mim, o poema tem uma música
toda peculiar que pode eventualmente prescindir de sua presença digamos
assim audível no mundo; o poema pode ser fruído no silêncio
do pensamento do leitor. Não se trata de recusar sua performance oral,
isto é, a enunciação à viva voz do verbal para além
da sua visualidade na página impressa. Já a canção
é "palavra voando" (como escreve James Joyce), um lance de
linguagem cujas regras se ligam à respiração vital do corpo.
Em resumo: minha poesia está nos livros e minha música (compósito
inextrincável de letra e melodia) nos CDs que lancei individualmente
ou com a minha banda Os poETs.
Você acaba de participar do "ECO: Performances poéticas",
na cidade de Juiz de Fora. Como você vê a performance como meio
de expressão da poesia? Você escreve poemas para serem lidos em
voz alta ou em algum tipo específico de performance?
Escrevo poemas para serem fruídos, não importa a maneira encontrada
pelo leitor-executante-intérprete para alcançar esse ponto de
re-invenção. Sempre gostei de simplesmente ler o poema, sem quase
nada de intensidade teatral que, não raro, resulta em retórica
altissonante típica de um gosto retrô, que ratifica a imagem da
poesia como essa coisa caipira, esse vociferar maneirista do coração.
A performance é um meio de expressão possível da palavra
poética. Cada poema, potencialmente, inaugura e exaure uma chance de
linguagem. Assim, cada performance deve se lançar desde a específica
solução estética constitutiva do poema.
Quais são suas principais referências na poesia? Numa
resenha do seu Confissões Aplicadas (Ameopoema), Ricardo Aleixo fala
de um "mixer" que inclui a poesia concreta, que inclusive tem a ver
com a idéia contemporânea da "materialidade" do poema.
Manuel Bandeira é o maior, a vida inteira. Para mim, dentro da tradição
brasileira, o poema "Organismo", de Décio Pignatari, é
o mais importante do século XX: a conquista para a poesia de uma visualidade
cuja precisão opera sobre a imprecisão do icônico transformado
em simbólico, ou do verbal em trânsito para o não-verbal.
Uma poesia (a visual) que nunca resta no lugar onde há pouco a deixamos.
Qual o último livro de poesia que você leu? E qual o último
que você releu?
Estou finalizando a leitura de A Lógica do Erro, de Affonso Ávila
(é verdade, não faço média com a tradição
poética mineira, não!). Sou um admirador do Affonso, o sábio
da poesia do escárnio. O poeta sabe dar ao erro, ao defectivo da linguagem,
o assentamento de um quatro que se contenta de seu pé quebrado, porque
foi arduamente conquistado, cito um pequeno trecho: "o infenso à
inferência do lobby/ de palavras astutas artísticas...". Estou
relendo os contos de Kafka enfeixados no livro Um Médico Rural (tradução
de Modesto Carone). Mais do que com a lógica do sonho, o autor de O Processo
lida com a lógica do pesadelo. Kafka reinventa o humor numa perspectiva
exasperante.
Além das questões formais, é possível
falar de um universo representado por seus poemas? Quero dizer, se o lírico
seria a manifestação de um "eu interior", que eu é
esse nos seus poemas? E no caso de No Assoalho Duro (Éblis), seu último
livro? Ronaldo Machado menciona suas leituras de Nietzsche como fator relevante
em seus poemas...
Mas além das questões formais não há mais nada.
Poesia é forma, mesmo. Forma: estrutura significante de controle do acaso,
plasticidade do pensamento-arte. Gostaria de lembrar uma máxima mallarmeana,
diz assim: quem fala no poema não é o poeta, mas a linguagem,
ela mesma. A poesia contida nesse livro é a que me foi possível
conquistar durante os três anos em que vivi em Salvador, Bahia. Em Nietzsche,
vontade de poder se resolve criticamente em vontade de engano. A alegria do
engano e a poesia como essa viagem empreendida pelo leitor ao (seu) desconhecido.
Qual a história de No Assoalho Duro? São poemas escritos
entre 1988 e 2006, o que é um longo intervalo de tempo. Trata-se de uma
reunião de poemas aleatórios ou existia uma consciência
de um livro sendo gerado ou nada disso?
É um livro-resto, livro-refugo. Um álbum de formulações
de linguagem expurgadas, colocadas de lado, deslocadas, postas à prova
da margem, do derrisório. Quando comecei a organizar o livro, resolvi
partir do seguinte ponto: configurar um livro não-virtuoso, isto é,
que não ratificasse essa "costumização" que o
poeticamente correto impõe ao discurso de muitos dos meus pares.
Você trabalha também na veiculação de poemas,
como editor (além de exercer a crítica literária). É
uma coisa cada vez mais comum essa pulverização dos mercados,
conteúdos veiculados pela internet, selos independentes de pequenas turmas
de escritores, em locais específicos, talvez atingindo públicos
também mais localizados, ao contrário da lógica globalizante
da indústria de massa. Como você percebe e vive isso?
Sinto-me confortável, por enquanto, dentro da figura do poeta-crítico,
ou seja, acho importante pensar sobre os limites, as singularidades e as imposturas
do gênero, tentando escrever, inclusive, poemas que inventem outros problemas.
O poema não tem que resolver nada. De resto, um bom poema não
admite solução. A veiculação a que você se
refere é mais ao trabalho da editora Éblis que conduzo em parceria
com Ronaldo Machado. Mantemos diálogo com muitos poetas e realizações
estéticas. Vivemos um nutrimento mútuo. Hoje, o atrito vertiginoso
entre diversas ações relacionadas à poesia é uma
experiência valiosa. Relações transversais abertas no espaço-tempo
virtual.
A internet se tornou um lugar de encontros, disseminação,
uma espécie de mercado independente e paralelo. Você possui o blog
Poesia-pau. Como você atua na internet, no blog e de outras formas? Você
acha que o potencial da internet está sendo bem usado no caso da crítica
e difusão da poesia? Do lado da crítica, às vezes não
é tão fácil encontrar fontes e escritos consistentes...
A internet permanece em movimento, para o bem e para o mal. Ainda está
por ser feita uma análise mais abrangente acerca de suas simulações,
desdobramentos e invenção de uma nova ordem sócio-cultural
que esse meio, quem sabe, estaria apto a nos oferecer. O que é interessante
de observar na dinâmica sígnica da rede mundial é que é
possível fazer conviver de forma mais rente o pensamento refinado com
a intervenção cultural prática. Há uma agilidade
saudável na tensão entre esses dois pólos tradicionalmente
cindidos. Do lado de cá do não-internético também
há muito texto crítico de segunda categoria. É apenas uma
questão de intensidades.
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