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Literatura

As obras da Maratona
Sidnei Schneider

O sucesso da Maratona Literária, promovida pela Coordenadoria do Livro e Literatura da Secretaria Municipal de Cultura, motiva o debate das obras lidas coletivamente. O texto a seguir aborda as íntimas relações entre A metamorfose, lida na última edição da Maratona, e Cem anos de solidão, que inaugurou o projeto.

Numa entrevista à Paris Review, em 1981, Gabriel García Márquez relata como iniciou a escrever: “Na universidade, em Bogotá, comecei a fazer novos amigos, que me iniciaram nos escritores contemporâneos. Uma noite um amigo me emprestou um livro de contos de Franz Kafka. Voltei à pensão onde morava e comecei a ler A metamorfose. A primeira linha quase me fez cair da cama. Fiquei muito surpreso. O começo é assim: ‘Certa manhã, ao despertar de sonhos agitados, Gregor Samsa viu-se em sua cama transformado num inseto monstruoso...’ Quando li essa linha, pensei comigo mesmo que não sabia que era permitido escrever coisas assim. Se tivesse sabido antes, teria começado a escrever há mais tempo.”

García Márquez ainda percorreria um longo caminho até produzir Cem anos de solidão, mas aqui já temos uma ponte que o une ao escritor tcheco e à obra em questão.

A metamorfose de Kafka é um duro retrato da família Samsa e da realidade europeia após um estágio brutal de desumanização e alienação dos seres humanos, propiciada pela união do capital industrial com o bancário, gerando o feroz capital financeiro, que tinha levado o mundo a uma guerra mundial e o levaria ainda à outra. Essa situação histórica, entretanto, é externa, não figura diretamente na obra, nem mesmo como pano de fundo diante do qual se moveriam os personagens. Pode ser depreendida através da análise, o que requer uma atitude e um esforço intelectual.

Se há espaço para a ironia, uma ironia fina e cáustica – como o episódio da maçã atirada pelo pai em Gregor, que lhe causa um ferimento e apodrece presa ao seu corpo, fazendo, mais tarde, com que “o pai se lembrasse que Gregor era um membro da família” – não há condições nem espaço para o humor, por silencioso e íntimo que fosse.

A narrativa é bastante sóbria também do ponto de vista da sexualidade dos personagens. Se, como de qualquer texto literário, é possível retirar ilações de cunho psicanalítico, os personagens se movem num universo frio e desprovido de desejo manifesto, com a rara exceção, talvez, do momento em que Gregor ouve a irmã tocar violino e conjetura tê-la para sempre no seu quarto.

Já em Cem anos de solidão, e de resto em todo o realismo mágico latino-americano, a situação política opressiva – e estamos no período dos regimes ditatoriais – é fartamente denunciada. Ainda que García Márquez se utilize do fantástico e da metáfora para abordar o momento histórico, essa relação é bem mais imediata do que a abstração necessária para compreender tal aspecto na novela de Kafka. O episódio do massacre na praça, por exemplo, realmente aconteceu, e o autor se valeu de testemunhos e documentos para recriá-lo literariamente. Como nunca se soube exatamente quantas pessoas foram assassinadas, Márquez determinou que fossem três mil. “Obviamente um exagero”, diria mais tarde, acrescentando que o Congresso e os jornais colombianos agora falam de “três mil mortos” como se fosse um fato histórico. O cotidiano muitas vezes irreal da América Latina, as obras do realismo fantástico europeu, e a forte presença de um imaginário surrealista na literatura e nas artes plásticas hispano-americanas – quase inexistente no Brasil até os anos sessenta do século passado – criaram o caldo de cultura necessário para que a urgência de expressão política sob uma censura severa gerasse o chamado realismo maravilhoso.

Em relação à ironia e ao humor, García Márquez os eleva aos píncaros do riso e da gargalhada. Esse aspecto – a capacidade de nós, os latino-americanos, rirmos das nossas próprias dificuldades, num período extremamente sério e crítico como aquele – encantou o mundo e franqueou-lhe os leitores, muitos dos quais já predispostos ao fantástico pelo psicodelismo da época. Sobretudo, é um elemento novo, uma contribuição para a literatura mundial, ausente na obra de Kafka e, de uma maneira geral, nos escritores europeus do período.

O texto de Márquez não é frio, é cheio de sensualidade e até de erotismo. José Arcádio e a cigana, por exemplo, fazem sexo numa tenda pública; chega outro casal e começa a se despir; a mulher olha para José Arcádio e examina com uma espécie de fervor patético o seu “magnífico animal em repouso”: “– Rapaz – exclama – que Deus o conserve para ti”. O leitor é atingido pelo erotismo da cena e ri da exclamação estupefata da mulher. Esse tipo de situação gera um sentimento positivo, uma alegria de viver, completamente estranha à lúgubre narrativa kafkiana.

Quanto a pontos de contato entre os dois textos, o que esplende é a maneira completamente natural, cotidiana, de narrar um fato completamente mágico e sobrenatural. Segundo Jorge Luis Borges, essa é a própria condição para o bom relato fantástico, não sendo uma característica deste ou daquele escritor. García Márquez, de modo bastante simples, deu a receita: “Se você diz que há elefantes voando no céu, as pessoas não vão acreditar em você. Mas se disser que há quatrocentos e vinte e cinco elefantes no céu, as pessoas provavelmente acreditarão em você”. Quando estava escrevendo sobre a personagem que é rodeada por borboletas amarelas, o autor pressentiu que “se não dissesse que as borboletas eram amarelas, as pessoas não iriam acreditar”. Esse pausado detalhamento do que é fantástico também se dá em Kafka – “as inúmeras pernas, que eram miseravelmente finas, comparadas com o resto do corpo, agitavam-se desamparadamente perante seus olhos” – fazendo com que o leitor não jogue o livro na cabeceira e aceite como verossímil o fato de Gregor Samsa estar caminhando pelas paredes e pelo teto do seu quarto.

Publicado originalmente na Revista 360 Graus, Porto Alegre, n. 2, pp. 5-6, nov. 2005.

21/06/2009

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Comentários:

Sidnei, é sempre uma grande alegria ler uma resenha como essa, tratando de forma simples sem ser superficial obras de grande importância.
Marcelo Spalding, Porto Alegre 01/07/2009 - 19:36

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  Sidnei Schneider

SIDNEI SCHNEIDER é poeta, contista e tradutor. Publicou os livros de poesia Quichiligangues (Dahmer, 2008), Plano de Navegação (Dahmer, 1999), a tradução Versos Singelos-José Martí (SBS, 1997) e o volume de contos Andorinhas e outros enganos (Dahmer, 2012). Participa de Poesia Sempre (Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, 2001), Antologia do Sul (Assembleia Legislativa, Porto Alegre, 2001), Moradas de Orfeu (Letras Contemporâneas, Florianópolis, 2011) e de mais de uma dezena de antologias. 1º lugar em poesia no Concurso Talentos, UFSM (1995), 1º lugar no Concurso de Contos Caio Fernando Abreu, UFRGS (2003) e outras premiações. Membro da Associação Gaúcha de Escritores.

sidneischneider@gmail.com


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