artistasgauchos












Desenvolvido por:
msmidia

Música

Zii e Zie, Caetano tarado ni si mesmo
Ronald Augusto

Pode-se avaliar o trabalho de um artista e, de resto, de qualquer sujeito, de duas maneiras, a saber: (a) numa, podemos confrontar suas rea-lizações com as dos seus iguais, isto é, investigar o que oferece de singular relativamente ao estado de espírito do tempo em que se insere; em outra (b), comparar, por exemplo, sua realização mais recente com o continuum de um projeto estético representado pelo conjunto de suas obras. Em se tratando do percurso musical de Caetano Veloso, cool e pop até o limite do narcísico e do autofágico, já se observa, há pelo menos umas duas décadas, que a qualidade de suas intervenções artísticas não se eleva mais, feito antes, acima do grosso da produção da música popular presente. De outra parte, ou de um ponto de vista nem tão pessimista, este fato talvez queira nos dizer que, felizmente, a “fila anda”, ou seja, que talvez existam experiências musicais mais interessantes no horizonte da nossa recepção e que, portanto, não merecem restar à sombra de medalhões que ainda tangem a lira, não obstante terem ultrapassado há algum tempo o marco dos cinquent’anos. No entanto, o mais preocupante, não sei se para o ponto de vista do compositor baiano, é que com relação a ele comparado com ele mesmo, a situação beira a estagnação. Estamos diante, digamos assim, da “decadência do império caetano”. E a propósito do que até agora foi dito, em Zii e Zie, mais recente disco do artista, tal realidade é incontornável.

Na primeira edição de O que é comunicação poética (1977), um pequeno grande livro escrito por Décio Pignatari, consta uma epígrafe do craque de futebol Ademir da Guia dizendo o seguinte: “Ninguém pode, em qualquer profissão, manter sempre o nível mais alto que consegue alcançar. Ninguém consegue isso, nem Pelé, nem Picasso, nem os melhores escritores, nem os melhores empregados ou patrões”. Talvez o mestre de todos os tempos da história do Palmeiras, consciente de que a carreira de um jogador de futebol é muito curta, já que o desempenho físico em que se baseia começa a decair mais cedo do que o intelectual, estivesse um pouco amargurado e não vislumbrasse uma saída para o fato além da esperada resignação. De qualquer modo, mesmo que raros exemplos desmintam o aparente pessimismo deste depoimento, no nervo da questão reside uma crítica à presunção de um verão eterno da criação, de que só alguns eleitos se beneficiariam. Com isso não estou defendendo que Caetano Veloso se resigne ou se acomode frente ao processo de declínio que começa a enfrentar, mas que, ao menos em homenagem à sua indigitada inteligência, não simule uma hiperestesia a cavaleiro como reação às poucas objeções que lhe são ofertadas enquanto caminha pisando (às vezes caindo) em astros, distraído.

Zii e Zie (“tios e tias” em italiano) dá continuação ao encontro musical do provecto compositor (66 anos) com um grupo de jovens instrumentistas de formação roqueira iniciado em 2006 com o álbum Cê. O trio que acompanha Caetano Veloso, formado pelo guitarrista Pedro Sá, pelo baterista Marcelo Callado e pelo baixista Ricardo Dias Gomes, de acordo com alguns críticos e ouvintes especializados, se filia ao “indie” rock (ou rock independente em inglês), estilo musical que caracteriza bandas que não são lançadas por grandes gravadoras. Em recente entrevista a uma emissora de televisão, ao ser indagado sobre esta, até certo ponto, surpreendente e esquisita parceria, Caetano, usando de toda a sua fleuma e esperteza de mulato fino baiano, argumentou que achava tal conjunção algo natural, pois de certa forma sua trajetória sempre fora “meio indie”, isto é, ele sempre se sentiu um artista independente. Só mesmo uma personalidade tão entranhada nos mecanismos do establishment do entretenimento cultural, ou seja, irrigando-o e por ele sendo irrigado, poderia dizer uma coisa dessas com a maior cara de pau, e em tom de altivez crítico-criativa. Trata-se de uma falácia. Caetano Veloso é tão independente quanto as artes visuais hoje, por exemplo, o são. Com efeito, as artes contemporâneas nunca estiveram tão integradas às normas de consagração suportadas e representadas pelas instituições da academia, do museu e do curador-intérprete. Essa arte que se problematiza até a exaustão por meio de trocadilhos transitáveis e se perpetua só quando se deixa ver em documentários audiovisuais, vive, a bem da verdade, a expensas da chancela e da canonização covarde dessas instituições moribundas e de financiamentos públicos. A este propósito, recentemente a Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (Minc) decidiu que um projeto de turnê do indie Caetano, orçado em R$ 2 milhões, não precisaria de incentivo “por ser comercialmente viável”. Se na letra da canção Falso Leblon, do recente álbum, o cantor, dirigindo-se irônico-pomposamente ao Estado-Nação em transe, indaga: “O que faremos do Rio/ quando, enriquecendo,/ passarmos a dar/ as cartas, as coordenadas/ de um mundo melhor?”, poderíamos replicar perguntando: o que mais fará Caetano, premido por sua corte de produtores lobistas, se continuar dando as cartas e enricando por esses meios? Definitivamente, não precisamos mais comer Caetano.

De volta à audição de Zii e Zie. Alguns autores e roteiristas da teledramaturgia brasileira, e principalmente aqueles a serviço da TV Globo, seguem uma fórmula muito simples para garantir o sucesso imediato de qualquer novela ou minissérie. Basta reunir um grupo de personagens sem pai nem mãe, ricos e pobres, chatos e/ou politicamente (in)corretos, uns oriundos da favela, outros do asfalto e, finalmente, fazê-los circular pelos arredores do Leblon ou de Ipanema. Está feita a telenovela. Pois em Zii e Zie, o mesmo quadro se descortina aos ouvidos do fruidor. Caetano Veloso continua a cantar “os deles e os delas da TV Globo”. O mar mordisca o glamour pasteurizado dos topônimos da capital fluminense. A “beleza dos versos” fica como que assegurada através da simples enumeração dos nomes-senhas de certos bairros e seu bestiário. Na canção Sem cais, parceria de Pedro Sá e Caetano Veloso, diz a letra: “Nome, bairro, amigo, amor/ de onde vem o parar o mar?/ (...)/ Barra, Gávea e Arpoador/ deuses brancos de luz do mar/ deuses negros, um esplendor”. A levada funkeada, ao rés do pop formular, já pode ser oferecida como música-tema de algum personagem da trama. Aliás, a letra contempla, em metáfora resumida, a variedade dos núcleos e dos grupos que constituem o microcosmo do folhetim, pois temos os “deuses brancos”, mas também os “deuses negros”, cujos destinos são moderados pela audiência.

Em A cor amarela, o Rio revem soteropolitano. As banalidades e as milícias da baianidade atuam sobre a malícia oficialesca da letra eta, eta, eta: “Uma menina preta de biquíni amarelo/ na frente da onda/ que onda, que onda, que onda que dá/ que bunda, que bunda!/ (...)/ É o melhor que podia acontecer/ à cor amarela/ destacar-se entre o mar e o marrom/ da pela tesa dela”. Caetano é o organismo que quer repetir-se, perdurar. Mas o “menino do Rio” perdeu, não volta mais. O poeta da música popular de Pedro Almodóvar não passa, agora, de um vampiro do Rio; ele espicha o olho para a lusitana “menina da Ria” enquanto posa para a foto ao lado dela, ofertando-se como se fora mais cobiçável do que cobiçoso, galo galunfante: “Uma moça de lá do outro lado da poça/ numa aparição transatlântica/ me encheu de elegante alegria”. Sobre este Rio de Janeiro instalado num ponto equidistante entre a mentira e a veracidade, cada vez mais estetizado como cidade cenográfica do merchandising institucional e privado, o disco ainda nos oferece a bela melodia da canção Lapa, cujo ponto forte do arranjo é a guitarra de Pedro Sá, contínua e minimal, acentuando o tempo forte da canção com acordes firmes que o guitarrista deixa soando. No limbo dantesco, o poeta florentino dá refúgio aos seus iguais, pensadores, artistas e escritores de renome com quem palestra e se equipara talvez vaidosamente. De certo modo, a Lapa de Caetano Veloso é um limbo, ou a transculturação do Pelourinho nesse gueto carioca. Ali ele topa com Guinga, Pedro Sá, o Circo Voador, o produtor musical Kassin, a PUC e “a gíria dos bandidos”; ali é onde tudo vai desaguar e se fundir, inclusive Lula e FH. É previsível, a Lapa-limbo de Caetano só podia cheirar a tropicalismo revisitado.

A cidade maravilha da beleza e do caos se desdobra exposta ao tempo e às intempéries, monumento ruinoso a fazer eco à tópica horaciana. Na canção Lobão tem razão, ouvimos a voz do cantor: “Chove devagar/ sobre o Redentor”. Exceto pelos seguintes versos da primeira estrofe da letra: “Um crucificado deitado ao lado/ os nervos tremem no chão do quarto/ por onde o sêmen se espalhou”, que ainda têm alguma qualidade, esta é a música mais torpe do disco. Caetano Veloso simula umas pazes paupérrimas visando a encerrar ou a colocar em banho-maria a polêmica de gatos pardos que há uma penca de anos entreteve com o roqueiro e fanfarrão Lobão. Cheio de lances intertextuais e de jogos de palavras infelizes, o “poeta da canção” diz, por exemplo: “O homem é o próprio lobão do homem”; “Mais vale um lobão/ do que um leão” (aludindo ao seu signo solar); e, por fim, “O rock acertou”. A par disso, a melodia, além de meio abolerada, é monótona tal como a sequência de rimas internas em ADO que ecoam no verso citado mais acima: “Um crucificado deitado ao lado”. Nem o solo de guitarra com timbre distorcido ao final, e a réstia de microfonia, voluta-chapa dos mestres do instrumento, conseguem fazer com que relevemos o déficit de qualidade da peça.

Nos eventos promocionais de lançamento do disco Zii e Zie, o compositor revelou que a obra talvez tivesse algo a ver com uma ideia de “transambas”. Depois, os críticos começaram a dizer que Caetano “revisita a linguagem do samba”, que o samba “surge com uma roupagem rock”, que se trata, mutatis mutandis, de uma “releitura”, etc, etc. Mas não é nada disso. O estatuto da releitura abriga uma série de imposturas criativas. No máximo, o que Caetano Veloso nos apresenta é uma ordinária customização do samba, assim como o fazem, por exemplo, Seu Jorge, Marcelo Camelo e aquele baixo clero de imitadores de João Bosco. Aliás, a versão para o samba Incompatibilidade de gênios, dos velocistas Bosco e Blanc, é uma decepção, não só porque agora ela se arrasta e parece jamais chegar ao fim, abandonando o sincopado original de sua álacre aceleração, onde os versos terminam em acentuação oxítona – a pancada do surdo –, mas também porque em nada lembra aquelas surpreendentes transposições para canções de Lennon e McCartney feitas pelo cantor no álbum Qualquer coisa (1975), um dos seus melhores trabalhos.

Porém, o que mais soa irritante em Zii e Zie é a performance vocal de Caetano Veloso. Todas as interpretações das canções que integram o álbum nos fazem lembrar o modelo kitsch de Cucurrucucu Paloma, que o cantor-ator, pelas mãos de Pedro Almodóvar, levou às telas. Caetano vai além do tolerável no uso de falsetes e vibratos. O cantor baiano parece disposto a querer ombrear-se com Milton Nascimento no que diz respeito ao falsete, e com relação ao vibrato, tudo indica que seus rivais são Cauby Peixoto e Ângela Maria. Mas esses artistas não merecem um adversário enfadonho como o Caetano gogó-de-ouro.

Todas as músicas de Zii e Zie recebem o desauxílio oneroso desses volteios de voz, que se imiscuem às guitarras e baixos, cujos riffs e solos soam, o mais das vezes, à maneira dos Strokes e dos Los Hermanos. Por quem?, a música mais bela do disco, fica amassada e emasculada graças ao vício vocal de Caetano Veloso. A canção é repetida por três vezes, entre a primeira e a última, a melhor apresentação de sua estrutura fica a cargo do guitarrista Pedro Sá, que refaz, nota a nota, a sinuosa e lírica melodia apoiado num fraseado tênue de bateria.

Infelizmente, no meio de tudo, exsurge de repente um harpejo alambicado de violão que serve de escada a esse falsete-clichê com que Caetano Veloso, mais uma vez, pretende vencer, de modo erístico – isto é, tendo ou não razão –, seus críticos caretas.

Publicado originalmente no Diário Catarinense


06/08/2009

Compartilhe

 

Comentários:

Confesso que há alguns pares de anos, que talvez já faça um par de décadas, abandonei a obra de Caetano por não me ver mais identificado com sua proposta estético-musical. Depois do CD LIVROS, tudo em Caetano é muito chato, pobre e repetitivo. E agora ele tá parecendo mais gagá que o Mick Jaeger, embora goste e respeite muito a trajetória de ambos e o que fizeram como pensamento enquanto produto a partir dos anos sessenta. O problema é que já se passaram quase meio século... e Vitor Ramil, Lenine, Paulo Freire, Jorge Drexler e mesmo Pata de Elefante já nos fazem lembrar com uma certa poeira o Led Zeppelin, contexto em que o Caetano melhor se enquadra. De qualquer forma, o cara é grande, como grandes são todos os acima citados. Mas a ousadia em fazer um álbum com o propósito desse último incorreu no erro do vazio. Uma pena, Caetano. Quem sabe sugerimos a ele consultar o Nei Lisboa para ver como se rebrota com qualidade.
Bruno Brum Paiva, Porto Alegre/RS 08/08/2009 - 13:59
Acompanhei a realização desse disco pelo blog Obra em Progresso, onde se podia ouvir boa parte das músicas, ainda em processo de elaboração. A princípio me soaram meio assim com um certo artificialismo pseudo-vanguardista, mesmo. Mas como o próprio Caetano disse uma vez numa entrevista ao Pasquim, em resposta a uma provocação do Tarso de Castro sobre o Simonal, para fazer uma crítica a um músico ou cantor é preciso ouvir o disco inteiro, coisa que não fiz ainda. Costumo dizer que um dos grandes méritos que vejo no Caetano é o fato dele polemizar e provocar o debate, o que é sempre muito saudável. E raro, infelizmente, no nosso meio cultural. E o debate pressupõe o contraditório como condição para a produção de uma consistente massa crítica. Nesse sentido, este artigo, pelo seu conteúdo e o enfoque perspicaz e abrangente, traz uma contribuição importante. Adicionei aos favoritos, depois de ouvir o disco vou reler atentamente. Por ora, é como diriam os italianos: se non è vero, è ben trovato.
Armando, Porto Alegre - RS 08/08/2009 - 13:28
Ronald: Revisitando teu artigo, observo o caráter de peça autoral antológica. Minha simples opinião coincide com a do autor de Leãoozinho(ou seria Pavãozinho)que mostrou-se irritado com algum fulano que falou mal do disco Zii e Zie, em recente análise.. Caetano pode estar em decadência, mas, sabe,ainda, reconhecer, à malgrado, o bom trabalho dos outros. Tua inserção crítica se dá em níveis musicais, lingüísticos, antroprológicos, revelando um ótimo conhecimento da obra e do autor e do cenário cultural das últimas décadas de MPB. Por isso, a crítica de um ícone nacional vêm bem embasada, coragem que poucos tem...(pelo menos, no Brasil, já que na Argentina Juan José Sebreli desconstruiu Che, Maradona, Evita e Gardel). É um trabalho de reflexão e me faz lembrar os bons tempos de Tárik de Souza, Pepe Escobar e Torquato Neto e suas incursões pela crítica especializada. Abraço. Ricardo Mainieri
Ricardo Mainieri, Porto Alegre 07/08/2009 - 13:56

Envie seu comentário

Preencha os campos abaixo.

Nome :
E-mail :
Cidade/UF:
Mensagem:
Verificação: Repita os caracteres "465106" no campo ao lado.
 
  

 

  Ronald Augusto

Ronald Augusto nasceu em 1961 no estado do Rio Grande do Sul. O escritor atua em inúmeras áreas: é músico, letrista, ensaísta e possui ainda um trabalho significativo no âmbito da literatura. Como poeta alcançou expressividade no cenário nacional e até mesmo mundial, de tal forma que suas produções foram publicados em revistas literárias, bem como em antologias, dentre elas destacamos: A razão da Chama, organizada por Oswaldo de Camargo (1986), a revista americana Callaloo: African Brasilian Literature: a special issue EUA (1995), a revista alemã Dichtungsring Zeitschrift für Literatur, e outras.

dacostara@hotmail.com
www.poesiacoisanenhuma.blogspot.com
twitter.com/ronaldpoesiapau


Colunas de Ronald Augusto:


Os comentários são publicados no portal da forma como foram enviados em respeito
ao usuário, não responsabilizando-se o AG ou o autor pelo teor dos comentários
nem pela sua correção linguística.


Copyright © msmidia.com






Confira nosso canal no


Vídeos em destaque

Carreira de Escritor

Escrevendo para redes sociais


Cursos de Escrita

Cursos de Escrita

Curso Online de
Formação de Escritores

Curso inédito e exclusivo para todo o Brasil, com aulas online semanais AO VIVO

Mais informações


Cursos de Escrita

Oficinas de escrita online

Os cursos online da Metamorfose Cursos aliam a flexibilidade de um curso online, que você faz no seu tempo, onde e quando puder, com a presença ativa do professor.

Mais informações