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As Falácias do Livro Digital
Cássio Pantaleoni

Protagonistas da revolução digital como a Amazon e a Google estão investindo pesado nos dispositivos de leitura eletrônicos. A denominação comercial é o e-book – espécie de acrônimo derivado da expressão Eletronic Book ou, se preferirmos o bom português, “livro eletrônico” ou “livro digital”.

A Amazon demarca este mês de junho para a disponibilização dos primeiros dispositivos do Kindle DX, a nova versão do leitor eletrônico que pode se conectar a internet para permitir ao usuário o download de textos literários através da tecnologia wireless. Alguns afirmam ser este o novo paradigma que promete deslocar a obra escrita para longe do livro na forma com a qual estamos tão acostumados – o papel.

Já a Google, por sua vez, quer entrar no jogo e prepara-se para vender livros eletrônicos por meio de um sistema em que os editores possam definir o preço a ser cobrado dos consumidores por cada e-book. A ideia é competir com a Amazon no modelo de negócios conhecido como comércio eletrônico.

Evidentemente, os movimentos desses dois gigantes da era da internet aquecem o debate no setor editorial sobre como tirar proveito dos e-books sem prejudicar a comercialização de obras impressas, a exemplo das gravadoras que empenham laboriosos esforços no combate à pirataria de músicas. As editoras estão preocupadas com o que as gravadoras experimentaram no advento da música digital: incontáveis processos para combater os espaços de distribuição livre de músicas, ao mesmo tempo em que tentam lucrar com isso.

Os editores estão preocupados? O que dizer então dos autores de obras literárias? Acaso estes não deveriam nutrir maior preocupação que os editores? Embora revestidas de grande importância, estas não são as questões que me proponho a pontuar aqui. Antes disso, há uma interrogação fundamental: existe tal coisa denominada “livro digital”?

É incontestável que o mercado não se importa com a precisão dos conceitos. Antes,  vale o apelo comercial, ou seja, a psicologia de consumo (ou para quem é versado, o buying behavior). Os pensadores do marketing sabem que descuidos conceituais possibilitam interpretações favoráveis ao fortalecimento das vendas, mesmo que ocasionalmente os benefícios imaginados não sejam concretizáveis. Mas o que isso tem em comum com o tema do “livro digital”?

Não faz muito tempo que testemunhamos um fenômeno de vendas – o IPod da Apple. Esse dispositivo de reprodução de música digital contagiou primeiramente os jovens e depois os consumidores de todas as idades. A razão é simples: não importa o nível cultural de uma pessoa, a música é, em grande medida, coisa de que todo o mundo gosta. Ela serve de adorno aos estados de humor enquanto nos distrai da passagem do tempo. A música digital é a democratização de um conteúdo que sensibiliza mesmo o mais primitivo dos espécimes humanos. O IPod é o repositório prático para ela, bem como outros tocadores de MP3 portáteis, pois nos livra dos acessórios que de nada servem senão para ocupar espaço.

O “livro digital” aposta em fenômeno semelhante, crendo nas tendências do mundo virtual para fabricar um novo sucesso de vendas, como o Kindle DX da Amazon (uma espécie de Ipod para textos escritos). Contudo, há uma diferença fundamental entre música digital e livro digital. Enquanto a  música é um conteúdo, o livro é um objeto, uma mídia, o meio pelo qual se acessa o texto escrito.  A mídia para escutar a música é o Ipod, o CD, o rádio, os já quase extintos discos de vinil. Mas imaginar uma mídia para o livro é um equívoco. A mídia deve prover acesso aos textos escritos, que podem ser veiculados através de mídias como jornais, revistas, blogs, muros da cidade, dispositivos eletrônicos de leitura e até mesmo, pasmem, livros! Isso confere uma diferença brutal entre música digital e livro digital. É preciso compreender que a música não foi substituída por outra coisa senão a sua versão digital, e mesmo as mídias das músicas continuam aí, algumas mais usadas do que as outras. Mas no caso do livro, estamos tratando de outro objeto.

Se compreendermos essa distinção, então poderemos prever o modo como nos comportaremos diante da nova mídia. Por conta disso, ensaiei uma espécie de pesquisa rudimentar, visando identificar alguma preferência entre a nova mídia e a mídia impressa. Pergunto: o que você, enquanto leitor, prefere? Ter 1.500 livros ou 1.500 textos digitalizados? Aqueles para quem propus a questão não hesitaram: 1.500 livros! Diante dessa resposta é natural que se pergunte as razões dessa preferência. O curioso é que mesmo a geração acostumada ao mundo digital argumenta que ler um texto no computador ou na tela de um dispositivo eletrônico cansa! É comum observar que muitos mantêm a prática de imprimir aquilo que desejam ler com maior cuidado. As respostas obtidas reafirmam, em grande medida, a observação de Chris Anderson, editor-chefe da revista Wired. Anderson admite que a internet quebrou o modelo tradicional de distribuição física de músicas e que a mesma coisa está acontecendo agora com o mercado editorial, no entanto a popularidade do formato MP3 é acompanhada por uma rejeição do público aos CDs. "A diferença é que não há nada de errado com os livros", ele acrescenta.

As motivações do “livro digital” são crucialmente comerciais. A criação de um novo dispositivo (nova mídia), aproveitando o modismo da tecnologia, abre as portas para um novo mercado, mas em nenhuma hipótese esse dispositivo concede ao livro o caráter de objeto obsoleto. Não se pode falar do e-book como algo que promove a substituição indiscriminada do texto escrito. A mídia não substitui conteúdo – esta é a primeira das falácias.

Outro aspecto relevante é a experiência do leitor diante do objeto. Bastante apropriado é o exemplo da arte em pintura. A imagem digitalizada de um quadro não corresponde, em valor, ao quadro em si. A digitalização de um quadro apenas possibilita o acesso a uma idéia do quadro, em hipótese alguma corresponde à sensação que se tem ao estarmos diante da obra em si. Quando estive no Museo del Prado, em Madrid, por exemplo, eu já tinha uma boa idéia da obra “As Meninas”, do pintor espanhol Velasquez. Entretanto, ao me deparar com a obra em si, a experiência se deu de modo totalmente diverso. Constatei, no quadro original, detalhes que nem mesmo o processo de ampliação das imagens digitais me permitiu descobrir. A fotografia de um quadro não é o quadro, assim como a digitalização de um texto não corresponde ao livro impresso (edição). A edição do livro, o livro enquanto objeto, é algo cuja versão digital não é capaz de reproduzir, pois a textura do papel, a textura da capa, o esmero da encadernação, o cheiro do papel, o tamanho da obra, tudo isso (ainda) não é “digitalizável” (e será que um dia poderá ser?). O exemplo do quadro ilustra aquilo com o qual a música digital não conflita. A música é o objeto e suas exigências perceptivas estão restritas ao âmbito da audição. Há uma bela diferença entre as exigências perceptivas da audição e aquelas da visão. Mas isso remeteria para uma discussão adjacente que não pretendo incluir aqui.

Certo que devemos assumir que a nova mídia terá o seu espaço no mercado. Não há por que resistir às mudanças proporcionadas pela tecnologia, sobretudo em tempos de avanços tão significativos. O que não podemos esquecer, contudo, é que os apelos comerciais associados a certas tecnologias nem sempre correspondem à realidade.

Diante da contestação que ora desenvolvo, muita contra-argumentação já foi preparada. Os argumentos em favor da nova mídia, entretanto, também gravitam em torno de falácias que passam despercebidas ao senso comum. Vejamos alguns exemplos:

1. O “livro digital” é mais ecologicamente correto que o livro impresso.

Concebida desde uma perspectiva que assume o desmatamento como processo irrecuperável, a premissa aposta que o consumo indiscriminado de insumos derivados das árvores – tais como o papel – macula o meio ambiente. O livro impresso consome papel, que por sua vez consome árvores, que por sua vez cumprem função importante no sistema ambiental. Evidentemente, não podemos deixar de admitir que a irresponsabilidade extrativista é uma realidade, contudo políticas e práticas de reflorestamento concedem reversibilidade à situação de abate das árvores. De outra sorte, os dispositivos de leitura digital também causam prejuízos ao  meio ambiente, na medida em que operam através de baterias. Estes dispositivos eletroquímicos, quando em contato com a água e outros organismos vivos, produzem reações químicas que promovem uma cadeia de contaminação do meio ambiente. Para evitar isso, as baterias devem ser recicladas por entidades especializadas nesse procedimento. Ou seja, em ambos os casos os efeitos negativos são reais e precisam estar incluídos em práticas de reciclagem.

2. O “livro digital” é mais prático que o livro impresso.

Experimente ler um texto em qualquer dispositivo com tela de LCD ao ar livre em um dia claro e ensolarado. O desconforto é notório. A portabilidade do dispositivo é razoável. Não se pode esquecer ainda que os dispositivos necessitam ter suas baterias recarregadas regularmente. Contudo, nem este ou aquele aspecto é determinante na avaliação da praticidade de uma ou outra mídia. Precisamos prestar atenção é na experiência de leitura. Não conheço tecnologia capaz de repetir sem prejuízo a experiência de leitura do texto impresso.

3. O “livro digital” é capaz de simular certos recursos utilizados pelos leitores de textos impressos.

Bem, precisamos entender, de início, que recursos são esses. Alguns leitores costumam marcar trechos ou páginas, escrever comentários nas margens, voltar e avançar páginas rapidamente, segurar uma página enquanto leem outra e depois voltar para refinar o entendimento, acessar o índice remissivo etc. É bem verdade que os recursos dos dispositivos que permitem ler textos digitais assemelham-se àqueles usados no trato do livro impresso. A grande maioria desses “hábitos” dos leitores é simulável no dispositivo de leitura digital. Contudo, a experiência do livro tradicional vai muito além. Ela começa na livraria. Quando estamos diante das estantes, passando os olhos pelos títulos, observando capas, manuseando as páginas impressas, sentindo o peso do livro, muita coisa influencia a nossa decisão de ler o livro. E, enquanto o lemos e o marcamos com nossos comentários ou sublinhamos alguma passagem, deixamos um rastro de um momento de nossas vidas, como se fotografássemos as ideias de certa época. Isso sem falar na experiência de ser presenteado com um livro adornado por uma dedicatória. O próprio envelhecimento do livro promove a sua beleza, como o vinho. O sabor do livro envelhecido é totalmente diferente. Isso tudo pode soar como romantismo exagerado, mas observe que o dispositivo digital, devido a um mal funcionamento ou uma quebra inesperada, torna todo e qualquer texto armazenado em suas trilhas digitais apenas um texto. Não há rastro de vida em um texto digital. Há apenas o texto.

4. O “livro digital” promove a cultura na medida em que dá acesso a textos de grandes obras com preço mais acessível.

De todas as falácias, esta é a mais obtusa. O apelo da promoção cultural certamente não é, nem de longe, algo que possa ser emprestado à ideia do “livro digital”. Se você não ler o texto, para que serve tê-lo armazenado em um dispositivo de leitura eletrônico? Isso vale também para o livro impresso. Para promover a cultura, é necessário incentivar a leitura. O acesso às grandes obras já é possibilitado pelas bibliotecas físicas, tanto quanto algumas bibliotecas virtuais. Ler é o que promove a cultura.

É possível explorar dezenas de novas falácias associadas ao tema do “livro digital”. Contudo, não estamos dispostos a resistir ao advento de tecnologias ao modo de quem pretende a nostalgia dos velhos tempos. É inevitável que cada objeto cumpra a sua função na linha da história humana. O objeto livro e o objeto de leitura digital não concorrem entre si. O texto é sempre o mesmo, não importa a mídia onde ele reside. O que devemos desejar é que a boa leitura seja prática constante. Apenas para concluir, gostaria de fazer remissão à frase de um dos maiores ícones da indústria digital, o fundador da Microsoft, Bill Gates:

            “É claro que meus filhos terão computadores, mas antes terão livros”.

Acho que isto é suficiente.


14/08/2009

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Comentários:

Prezado articulista Este ano, estou encerrando o ciclo docente, na Urcamp/Bagé.Corajosamente iniciando outro,o do licenciamento de patentes.No rol da minhas inventivas, possuo três tipos de livros, que se inserem entre o gutemberguiano e os audio livros e os E books.Tuas ponderações são perfeitas.Tomara que os meus livros ajudem a dar aos livros a merecida longevidade e a merecida condição de respeito que merecem.Cordialmente Alcir Brito
Alcir Brito, Bagé RS 26/10/2009 - 23:42
Concordo, mas eu definiria edições caprichadas de livros como arte feita em cima da (ou em combinação com a) literatura. E acho que a literatura em si geralmente acaba passando ao largo disso. Devem existir dezenas milhares de pessoas discutindo Proust ou Dostoievski nesse exato momento, sendo que cada uma delas leu uma das milhares de edições disponíveis em centenas de línguas, e nenhuma leu o manuscrito original do autor. E ainda assim elas se entendem, e sentem que partilham a mesma obra.
Olavo Amaral, Porto Alegre/RS 20/08/2009 - 21:37
Olavo, vc tem a mais absoluta razão. Única ressalva: livro pode ser objeto de arte, sim, quando há um trabalho de design intencionalmente estético, principalmente quando perfeitamente integrado ao conteúdo verbal.Contudo, creio - e já dou exemplos, - de textos digitais onde suporte eletrônico e verbo se apresentam de modo interativo e artístico. Exemplo de suporte impresso artístico-literário: cada exemplar da coleção Particular da Cosacnaify (com contos de Melville, Henry James e Beckett). Exemplo de suporte eletrônico artístico-literário: o site da caixa de fósforos virtual de Samir Mesquita, a Revista Artéria 8 de poesia. Tenho um irmão músico que escuta mp3, cds, e vinil. Eu adoro papel, mas curto e aproveito eletrônicos, é claro!!! E, peloamordedeus, parem de pensar em artes plásticas como campo exclusivo da pintura! E a arte eletrônica? Abração.
PAULA MASTROBERTI, PORTO ALEGRE 20/08/2009 - 17:38
Sinceramente, não concordo com praticamente nada. a) Sim, o livro é um objeto. Mas assim como o CD, o livro não é arte, é mídia. E assim como o CD não importa (porque a arte está na música), o livro também não importa (porque a arte está nas palavras). b) concordo que o livro seja momentaneamente mais prático do que qualquer dispositivo digital em termos de comodidade de leitura. Mas isso é simplesmente uma questão transitória. Por outro lado, compare a praticidade de guardar 1.500 livros numa biblioteca ou num computador se você mora num apartamento pequeno, ou passa a maior parte do seu tempo viajando. c) Comparar o potencial de distribuição acesso de uma biblioteca física com o da internet é algo como comparar um gerador a óleo de fundo de quintal com a hidroelétrica de Itaipu. Sinceramente. O que a internet fez em termos de possibilitar o acesso de gente de qualquer lugar do mundo a música e vídeo de qualquer outro lugar do mundo é absolutamente incomparável com o potencial de distribuição de qualquer mídia física na história. Não existe a menor razão conceitual pra literatura ser diferente: existem apenas fatores que fazem com que o processo seja mais lento (i.e. necessidade de digitalização de textos impressos, ausência de um aparelho prático de leitura). Mas é obviamente só uma questão de tempo e tecnologia. E enfim, é natural que o livro, que faz parte das nossas vidas há milhares de ano, leve um pouco mais de tempo pra extinguir-se que o moribundo CD, que mal teve tempo de completar duas décadas antes de virar uma peça de museu. Mas no fim das contas, uma comparação desapaixonada não tem outra conclusão possível senão a de que um é tão desnecessário quanto o outro. A mídia passa. A arte fica.
Olavo Amaral, Porto Alegre/RS 20/08/2009 - 17:11

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  Cássio Pantaleoni

Cássio Pantaleoni nasceu em agosto de 1963, em Pelotas, Rio Grande do Sul. Escritor, Mestre em Filosofia pela PUCRS e profissional da área de Tecnologia da Informação. Vencedor do II Premio Guavira de Literatura, na categoria conto, em 2013, com o livro “A sede das pedras”; finalista do Jabuti de 2015 com a novela infanto-juvenil “O segredo do meu irmão”. Segundo lugar na 21a. Edição do Concurso de Contos Paulo Leminski; duas vezes finalista no Concurso de Contos Machado de Assis, do SESC/DF; duas vezes finalista no Premio da Associação Gaúcha de Escritores (AGES). Desenvolve workshops sobre leitura, técnicas de escrita ficcional e filosofia aplicada à literatura. Obras Publicadas: “De vagar o sempre” – Contos – 2015, “O segredo do meu irmão” – Novela infantojuvenil – 2014, “A corda que acorda” – Infantil – 2014, “A sede das pedras” – Contos – 2012, “Histórias para quem gosta de contar histórias” – Contos – 2010, “Ninguém disse que era assim” – Novela – 2006, “Os despertos” – Novela – 2000.

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