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Teatro

A Necessidade de Escuta
Douglas Carvalho

            Escutar. Verbo transitivo direto e intransitivo ao mesmo tempo. Ou seja, quem escuta, escuta alguém ou algo. Mas, ao mesmo tempo, escuta. Tão somente escuta. Mas será mesmo que se pode escutar somente? Como se tem falado muito nos últimos tempos, a sociedade está cada dia mais competitiva, forçando todos a produzir exaustivamente para conquistar o melhor lugar ao sol, onde esse sol é tão pequeno que geralmente só cabe uma pessoa. Isso tem levado todos a se preocuparem muito mais com o seu próprio desempenho e eficiência do que aliar forças para produzir em equipe. Por conseqüência, as pessoas acostumaram-se a escutar menos e falar mais. Cada vez menos temos oportunidade de possuir um tempo para escutar tão somente, tamanha é a necessidade de trabalhar para ser o melhor. Para provar tal fato, proponho um exercício de observação: veja como é difícil conseguir a vez de usar a palavra numa conversa em um grande grupo sem que os dedinhos comecem a se levantar para que sejamos escutados. Quem quer falar tem de sinalizar e muitas vezes até brigar pelo seu direito de tomar a palavra. Já diz a sabedoria popular que Deus nos deu dois ouvidos e uma boca e que devemos, pois, usá-los nessa proporção. Mas essa tarefa tem se tornado cada vez mais desafiadora.

            Escutar considerado como um verbo intransitivo propõe um ato de simplesmente escutar. Não que essa escuta seja passiva, pois desde que o verbo é escutar (e não ouvir) sugere uma atenção do ouvinte ao que está sendo escutado. Ouvir é simplesmente deixar que os sons invadam o ouvido, façam vibrar o tímpano e enviem sinais elétricos para o cérebro e nada mais. Escutar vai além. Faz com esses sinais elétricos se liguem com nossas lembranças, criem imagens, mexam com nossas emoções. Eu posso ser tocado fisicamente pelo outro através de sons. Não somente porque as ondas sonoras que ele emite com a voz chegam até os meus ouvidos, mas porque através da sua voz ele pode me influenciar. E isso nos leva a segunda classificação do verbo.

Escutar considerado como um verbo transitivo direto propõe a idéia de escutar algo ou alguém, ou seja, uma coisa que não está em nós e que vem de fora. E que nos toma. Penso ser esse o grande exercício do ator: escutar o local onde ele se encontra, escutar seus colegas de cena e, principalmente, escutar o público e saber que esse público vai escutá-lo, ou melhor, que esse público quer escutá-lo. A relação a ser estabelecida entre o ator e sua plateia é o que se considera como teatro. O jogo teatral não se faz somente com um outro ator, mas também com essa audiência que entra no jogo e aceita tudo o que estiver no palco, como uma criança que aceita as regras de uma brincadeira previamente estabelecidas para se divertir.

Mas por que é tão difícil escutar nos dias de hoje? Porque é impossível fechar os ouvidos como se fecham os olhos. Se não queremos ver algo, simplesmente baixamos as pálpebras ou viramos o rosto. Mas ouvidos não tem pálpebras. Se não queremos ouvir algo, temos apenas duas opções: ou nos afastamos muito da fonte sonora, ou competimos com ela com um som ainda mais alto. Minha tia diz, quando ouve algo desagradável, que “é nessas horas em que os ouvidos deviam estar embaixo dos braços”, para que num simples ato de fechar os cotovelos, nenhum som externo pudesse penetrá-los. Quantas vezes gostaríamos que esse desejo da minha tia pudesse se transformar em realidade. Agora, por exemplo, no momento em que escrevo este texto, ouço forçadamente o jingle da campanha eleitoral de um candidato que está tocando em um volume altíssimo num possível carro de som com potentes amplificadores. Outro exemplo é de não conseguir se concentrar se há uma conversa perto de nós e estamos querendo talvez ler ou escrever algo, como também está acontecendo agora em que meus ouvidos estão sendo assaltados por uma interminável conversa de telefone de minha colega com sei lá quem, a qual não me interessa nem um pouco, mas infelizmente não consigo não ouvir. O som nos invade sem pedir licença.

Chama nossa atenção e não conseguimos fazer mais nada a não ser escutar. E, se voltarmos à problemática dos tempos modernos, na qual as pessoas estão cada dia mais individualizadas, pensando somente no próprio bem-estar, em que perceber o outro está completamente fora de cogitação, escutar é um exercício de entrega difícil de ser realizado. Queremos muito mais ser escutados do que escutar o outro. Pois, escutar o outro significa percebe-lo. E percebe-lo, segundo Humberto Maturana, significa amá-lo. E como amar o outro nesse mundo autista em que vivemos?


20/09/2010

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Comentários:

Bacana. Vou escutar melhor.
Itamar Vargas, Canoas/RS 30/05/2011 - 22:42
Belíssimo texto, Douglas, vou usar na minha aula!
Marcelo Spalding, Porto Alegre 29/09/2010 - 20:01

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  Douglas Carvalho

Douglas Carvalho é ator, produtor cultural e professor de interpretação para Teatro, TV e Cinema. Bacharel em Teatro pela UFRGS, atualmente cursa também a Licenciatura em Teatro pela mesma universidade. Participou do seriado VidAnormal, da TVCom e atuou em três curtas-metragem como protagonista: Inversus (2008), Não Olhe (2010) e Inferno Azul (2010). No teatro, atuou em 11 espetáculos, entre os quais destaca Salomé - o amor e sua sombra (2007/2008), O Balcão (2007/2008), Dois Perdidos Numa Noite Suja (2008/2009) e A Aurora da Minha Vida (2009/2010), estes dois últimos com a Cia. de Teatro Gato&Sapato da qual faz parte atualmente, desenvolvendo seu trabalho como ator e produtor.

carvalho.douglas@gmail.com
douglasdad.blogspot.com
https://www.facebook.com/douglascarvalho7777


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