Como ser histórico, o gaúcho é o tipo humano surgido da fusão das populações originárias do pampa, os indígenas (charruas, minuanos) e os portugueses e espanhóis (soldados, marinheiros, aventureiros), dos desgarrados de todo tipo. Não tinham propriedade, família, nem endereço fixo. Nômades, assim como os indígenas. Carregavam o que precisavam no lombo de um cavalo. O gaúcho rio-grandense é o ser antropológico resultante de um período evolutivo de três séculos, nesta região meridional. 1600 – Missões jesuíticas / 1700 – Povoação portuguesa. E, especialmente, 1835, com a Guerra dos Farrapos. Nesse período, deu-se a fusão definitiva do “campeiro-soldado”. Um homem que precisou lidar com o gado e ao mesmo tempo lutar com as armas.
Hoje, esse gaúcho é o campeiro, o peão de estância. Sobrevive também nos arrabaldes, nas cercanias das cidades, principalmente nas da Fronteira Oeste. Esse é o chamado “gaúcho a pé”, que vendeu os arreios, perdeu o seu cavalo, e teve que sobreviver aprendendo a fazer de tudo, mas que mantém intacta uma alma e um modo de ser. Foi retratado magistralmente na trilogia de Cyro Martins. Ainda conserva algumas das características típicas dos indivíduos do campo, mas que já sofre o assédio cultural da globalização, primeiro através do radinho de pilha, e agora pela onipresença da televisão.
Sem o pampa, o gado, o cavalo, as estâncias, e as guerras, ele não existiria. Constituiu a sua natureza original e proveu sua forma de subsistência antes ainda do cercamento dos campos. Um viramundo, um vagamundo. Forjado pelos ventos frios do inverno e pela exuberância pastoril da primavera. Um general latino-americano disse que “nenhum homem é prudente montado num cavalo”. Ver as paisagens e o mundo em cima de um cavalo tornou-o altivo e autoconfiante, desafiador do destino.
Nessa relação com a natureza e os animais, ele formou os traços particulares do seu caráter. Um forte individualismo. Uma autonomia de espírito e firmeza de convicções. Senso agudo de liberdade. Recatado e de poucas palavras, mas sentencioso e sábio. Expansivo nos momentos de alegria ingênua e singela. É dono de um linguajar metafórico. Faz poesia ao falar. Exímio cavaleiro, qualidade que herdou dos indígenas. Sua vestimenta original (que hoje chamam de indumentária) era pobre e simples, e não com tantos adereços, como as que hoje alguns se pilcham de gaúcho.
Já o gaúcho-mito é a representação construída do gaúcho. E aí entramos no terreno minado pela ideologia. Há o tipo gaúcho. O tipo humano, com suas qualidades e defeitos. E há o estereótipo, construído pela representação ideológica do gaúcho conforme interesses históricos determinados. E o mito por excelência é o do gaúcho adâmico. Uma imagem mítica, projetada na figura difusa de um primeiro gaúcho, fundador da raça humana. Consequência disso é a mitificação do passado e do próprio presente, sempre heroico e grandioso. Há toda uma mitologia de fundação do mundo e uma celebração do “ser gaúcho”, mitificada, irreal, idealizada. Infelizmente, é o que acorre com o belo e já clássico poema “Eis o homem”, escrito e recitado por Marco Aurélio Campos, que conclui com estes versos: “Sou maior que a história grega. Sou gaúcho e me chega / pra ser feliz no universo”. Há um visível exagero nessa atitude, além de uma injustificada demonstração de incultura, ao elevar as façanhas dos gaúchos acima da história grega, o que, por sinal, também está na letra do hino rio-grandense. Qual a necessidade social e cultural dessa postura? No contexto da cultura universal, ela cumpre um papel obscurantista e se dilui na jocosidade de uma bravata.
Então, deveríamos livrar-nos de nossos sentimentos gaúchos? Não. Mas também não podemos, como disse Hélio Jaguaribe sobre os indígenas brasileiros, querer isolar “o gaúcho” num jardim antropológico, cultuá-lo num estado primitivo e sem perspectivas humanas na vida contemporânea, mantendo-o no altar da “santa ignorância”.
Há um sentimento gaúcho, sim, que ecoa em nós. Vem desses longes, e de repente nos toca quando ouvimos um ponteio de milonga, quando chora uma cordeona, no canto de um quero-quero, ao redor de um fogo de chão, no olhar encantado para a vastidão do pampa, nas vozes do minuano. Nesses momentos, nosso coração é gaúcho e universal. Para isso, não precisamos novamente inventar a roda e nem cultuar a tradição como um ponto de chegada, mas sempre de partida.
Claro, lúcido e bem argumentado, texto de quem entende do assunto. Ótima a lembrança de Cyro Martins, que nos deu um gaúcho mais próximo do real. Abraço ao Dilan. Sidnei Schneider, Porto Alegre29/09/2010 - 22:40
Belo texto, excelente reflexão. Há um exagero na defesa do mito do gaúcho que por vezes coloca o estado na situação desagradável de caricatura. Cultuar as tradições nunca deve significar cristalizar-se em um passado inventado. A última frase do texto aponta um saudável caminho para o tradicionalismo gaúcho. Robertson Frizero, Porto Alegre/RS28/09/2010 - 11:36
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