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Música

As Vias do Violão com a Voz
Felipe Azevedo

Foi o Bebeto Alves, compositor-criador, quem me falou, numa conversa paralela, intermitente com uma pesquisa acadêmica que estou desenvolvendo sobre a música no RS, que sempre na sua escuta de minhas gravações autorais, mesmo nas canções cantadas “o trabalho lhe soa instrumental” e já foi logo emendando –“não vejo demérito nenhum nisto, pelo contrário, é uma característica tua extremamente pessoal, singular!”.
A primeira coisa que me perguntei foi: será que isto que ele tá dizendo é senso comum sempre que alguém escuta?
A pergunta como desafio merece reflexão.

Em artigo intitulado Notas sobre o Violão na Canção Brasileira, a professora e estudiosa Teresinha Rodrigues Prada Soares, ao discorrer sobre as diversas etapas da participação do instrumento no cancioneiro popular, salienta que [...] durante vários momentos no passado, voz e violão estiveram juntos representando uma síntese dos movimentos musicais brasileiros, e aponta-se que essa parceria continuará [...], uma vez que no Brasil e em outros países, o violão assumiu, dentre outros papéis, o de acompanhador da voz em grande parte do repertório da música brasileira.

A autora identifica neste percurso do instrumento do passado à atualidade, pelo menos, três vias: (1) a do acompanhamento por dedilhado; (2) a do acompanhamento por batidas e (3) uma terceira, que ela chama de radial, onde o violonista ao acompanhar a voz que canta, insere “verdadeiros arranjos de melodias durante os acompanhamentos que viram quase solos”.
Saliento que até aqui estamos falando de uma perspectiva do violão exercendo uma função de acompanhamento da voz, certo?
Mas, e se invertermos esta polaridade?

A voz inserida no arranjo do violão a ponto de praticamente acompanhá-lo e sendo este violonista também aquele que canta, portanto exercendo ambas as funções, tocar e cantar?
Uma voz que se integra ao violão no transcurso da canção?
Uma voz que acompanha o violão e não o violão acompanhando a voz?
Seria esta uma quarta via, se nos mantivermos na linha de raciocínio da autora?
E a escuta desta canção modifica-se?
Sobre a terceira via a autora ainda nos diz que “se tem a impressão de que o acompanhamento da voz virou música de câmara” e quando isso acontece, também temos a sensação de que é difícil encontrar uma clara distinção entre a música popular e a clássica no Brasil.
Talvez daí o comentário do Bebeto que ao escutar, “a canção lhe soa música instrumental”.
Esclareço que a música instrumental é um estilo que se projetou no Brasil por volta dos anos 70 do século passado, a qual subentende, no caso do violão, aquele instrumentista que sola a melodia e executa simultaneamente o acompanhamento nas batidas, dedilhados e acordes, e que, sobretudo, não canta, apenas toca.

Exemplos de violonistas que tocam e executam seu violão nestes moldes e também acompanham cantores são Ulisses Rocha, Marco Pereira, Paulo Bellinati, Mauricio Marques, Rafael Rabello, etc.
Retomando a idéia de uma (4) quarta via – a do violão com a voz -, entendo que é possível encontrá-la no transcurso histórico do violão no cancioneiro popular do Brasil, lá nos registros fonográficos primórdicos, por volta de 1900-1910, nas gravações da Casa Edison (RJ). Especialmente, nas primeiras gravações de um cara chamado Eduardo das Neves (1874-1919), cantor, compositor, letrista, palhaço de circo e violonista, numa canção intitulada ‘Uma Festa na Penha’, onde no final desta, em torno de 20 segundos, o artista toca e canta em dialeto afro-brasileiro o cântico ‘Oi Cangorô”.
Neste pequeno trecho este compositor, ao inserir o seu canto no arranjo do seu violão que está literalmente “bordando bordões” (solo com as cordas graves) no percurso da canção, consegue provocar uma escuta distinta, pois tudo se integra neste seu fazer musical: a voz acompanhando o violão que também ambienta, no arranjo, o seu cântico quase nagô!
Outro exemplo a mim muito pertinente é o do disco de canções praieiras do compositor, violonista e cantor baiano Dorival Caymmi, intitulado ‘Caymmi e seu Violão’ de 1959.

Num período em que as grandes orquestrações eram a marca das produções fonográficas, este artista corajosamente gravou em disco inteiro suas canções praieiras apenas com seu violão, vindo inclusive a influenciar de modo singular, com sua concepção musical e violonística, o pensamento musical de outro violonista e cantor também baiano, João Gilberto; conforme atesta a obra ‘Caymmi e a Bossa-Nova’ escrita por Stella Caymmi, neta do Buda nagô!
Entendo que pensar a canção na perspectiva da voz acompanhando o violão difere totalmente daquela em que o violão acompanha a voz!
Neste sentido, violão e voz atuam como protagonista e coadjuvante numa permuta constante e dinâmica destas funções, por vezes se “digladiando”, no transcorrer da canção, gerando assim sensações múltiplas quanto às possíveis escutas (inclusive a de “soar instrumental”), pois uma canção tocada e cantada deste modo solicita uma audição mais ampla e simultaneamente mais reduzida, focada.

Vale lembrar aqui a máxima sobre o violão dita pelo grande violonista e maestro uruguaio, Abel Carlevaro: “o violão é como a água que se molda em qualquer recipiente”. Se considerarmos, este recipiente a canção e o violão maleavelmente moldado nesta com a voz, certamente que podemos chegar a uma quarta via (violão com a voz), possibilitando assim outras e renovadas escutas daquele compositor e violonista que toca e simultaneamente canta suas próprias canções.


13/11/2010

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Comentários:

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cartunista richard, SAPUCIA DO SUL 08/11/2011 - 21:54
Muito bom artigo. A primeira vez que ouvi o Felipe falar da voz como acompanhamento do violão pensei que ele criava um novo estilo de música brasileira. Entretanto, hoje percebo que é muito mais que isso; é toda uma forma de pensar a canção e sua relação com o instrumento - independente do estilo musical. Essas relações dialéticas, entre uma audição ampla e uma focada, voz e violão, funções coadjuvantes e protagonistas, sem dúvida encontram uma bela síntese nesta forma que o Felipe pensa a música e a canção.
Cristian Marques, Porto Alegre/RS 20/12/2010 - 11:01
Gostei muito de teu artigo, Felipe. E me veio à mente - talvez por equívoco -o João Bosco, que me parece por vezes dar mais ênfase à 4a via, no meio de uma canção "normal". Parabéns e um abraço.
José Antônio Silva, Porto Alegre / RS 24/11/2010 - 16:14
Muito interessante a perspectiva e a consciência dessa 4ª via. Tuas considerações nos ajudam a ouvir mais ou a compreender melhor o que estamos ouvindo. Vou botar esse Caymmi e Percussìvé, muito curioso do "Oi Cangorô" original (creio que o tocas também, não?) Abraço
Sidnei Schneider, Porto Alegre-RS 16/11/2010 - 19:35
Muito interesante teu artigo, Felipe. Fiquei pensando como seria essa "inversão de polaridade" no caso da guitarra flamenca. Na modalidade de acompanhamento do cante (que poucos exemplos temos no Brasil) é muito interesante o diálogo da guitarra con a voz. Ela tem que tem que "respirar" Junto con o cante. Imaginei como sería se o cante (ou seja, o cantaor) tivesse que "respirar" de acordo com a guitarra, com o seu ritmo, com a sua harmonia... Beijo grande!
Silvia Canarim, Sevilla 15/11/2010 - 22:10

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  Felipe Azevedo

Felipe Azevedo é compositor e violonista, premiado com 5 prêmios Açorianos, além de prêmios em festivais locais e nacionais. Licenciado em Música (IPA) e Letras (PUC), o músico também estudou Harmonia, Contraponto e Forma e Análise com Fernando Mattos; Harmonia e Improvisação com Cristiano Kotlinski; técnica violonística com Eduardo Castañera e atualmente recebe Orientação Vocal aplicada ao seu trabalho de compositor com Lúcia Passos. Com 03 álbuns lançados Felipe está em fase de finalização de seu novo CD – Tamburilando Canções – Felipe Azevedo – Violão com Voz, prêmio FUNARTE – RJ.

felipaz@terra.com.br
www.felipercussive.blogspot.com
twitter.com/felipazev


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