Muito utilizado no bairro Bronx, em Nova Iorque nos anos sessenta, e na movimentação estudantil francesa, em 1968, o grafite incorporou-se definitivamente ao modus vivendi contemporâneo. Impossível andar-se hoje pelas ruas das médias e grandes cidades sem o contato com essa forma de expressão, que muitas pessoas ainda confundem com pichação.
A pichação tem por objetivo agredir o patrimônio público, utilizando-se da grafia para isso. O grafite, por outro lado, prescinde deste expediente, preferindo formas e cores inusitadas, interferindo no espaço público com criatividade.
Quer gostemos ou não, o grafite veio para ficar, oferecendo à realidade perspectivas diferenciadas e ousadas, levando-nos a encarar o espaço urbano com olhos de ver. Negar-se a tal exercício é fechar a porta para o diferente, simplesmente porque o diferente nos inquieta. E nisso esta a oportunidades de mudar, escolhendo horizontes menos preconceituosos.
O grafite, portanto, interfere na paisagem urbana, influenciando de forma decisiva o comportamento social. Poder-se-ia dizer que é espécie de grito explodindo na garganta do artista em forma de cores e traços ousados, cujo eco reverbera pela cidade, na intenção de arrancar o povo do lugar-comum. Ninguém passa indiferente pelas obras de arte, autênticas instalações cuja intenção é colorir as “zonas mortas” das cidades, entregues ao abandono, servindo, inclusive, de lixões a céu aberto.
A aceitação a este movimento estético é tão surpreendente, a ponto de haver grafites enfeitando vitrines, servindo igualmente como cenário em desfiles de moda. É a absorção da rebeldia como caminho, incentivando o consumo. Os empresários do ramo deram-se conta de que o grafite é um nicho promissor, proporcionando aos jovens a possibilidade de incorporá-lo sem medo de represálias.
Ocorre que os grafites não refletem apenas o inconformismo, a insatisfação dos artistas diante do status quo. Querem, igualmente, manifestar as riquezas do espírito jovem, suas angústias e apreensões, cujos traços exageradamente coloridos – ou num preto-e-branco muitas vezes agressivo, revelam os signos da liberdade de expressão, interpretado erroneamente como a arte da demonização.
O que anteriormente era visto tão somente nos assépticos ambientes das galerias, hoje se encontra não só nas zonas mortas das cidades, mas, também, na geografia nobre dos grandes centros urbanos, provando a força de uma estética que ainda é profundamente criminalizada. Grafite não é pichação, mas arte da melhor qualidade, que não visa mostrar levianamente as feridas da cidade, mas, sim, cicatrizá-las com criatividade e ousadia.
Em Pelotas, por exemplo, quem se dispuser a caminhar pela zona do Porto, onde há prédios abandonados – antigos armazéns, engenhos etc., praticamente em ruínas – vai se deparar com centenas de grafites, muitos desses com possibilidade de fazer bonito em bienais de arte, inclusive em São Paulo.
A miséria e o abandono do lugar modificam-se mercê de uma iconografia que surpreende, extasia e eleva. Em algumas obras há necessidade de parar e refletir, tamanha é a força do simbolismo que encerram, desafiando nossa capacidade de interpretação. O olhar curioso e sem preconceitos acaba encontrando, misturada à profusão de cores e traços irreverentes, a chave para o entendimento da contemporaneidade.
O que parece esquizofrênico e sem sentido, revela-se, de súbito, capaz de traduzir as sensações do ser humano em toda a sua complexidade. Meio às ruínas daquilo que um dia teve solidez, a fragilidade do grafite impõe-se soberano, refletindo nosso tempo, dizendo-nos que não adianta correr para vencer o relógio.
A arte revolucionária dos muros pede calma e reflexão. O mutismo, à base de tintas e reboco velho que se esfarela, grita no silêncio das manhãs e no sossego das tardes. Existe para ser ouvido e visto por quem não tem pressa de chegar. Aliás, não tem pressa para nada. Viver é o suficiente. Ou deveria ser.
Contato: manoelsmagalhaes@gmail.com
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