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Literatura

O fim das coisas velhas, eu bebo, sim
Ronald Augusto

A primeira impressão não é bem a que fica, mas a que nos engana. O que importa é o que surte depois; a boa poesia nos desengana, o mesmo acontece com o amor. Começo esse comentário sobre o livro O fim das coisas velhas de Marco de Menezes de um modo meio impressionista, sim. É que meu sentimento com relação a esse livro foi ambíguo. Não consegui distinguir, ao primeiro gole (como ensina Hans Magnus Enzensberger), se o conteúdo do barril era de vinho ou de vinagre. Agora já sei. E parafraseando a anedota do bêbado e o gênio da lâmpada, bem que eu gostaria de ter mais barris de vinho como O fim das coisas velhas que jamais se esvaziassem, apesar de toda a minha sede.

Muito bem, mas vamos ao que interessa. O livro, até onde vai minha interpretação, não se refere ao parti pris das coisas, mas à própria exaustão delas, tanto quanto à do discurso que as homenageia ou presentifica em tom pós-moderno. No entanto, advirto que essa indicação ao pós-moderno não é feita com o intento de censura ou de coisa parecida. Há um problema no foco, que pode ser outro. O modernismo se tornou tão oficial que a sua reação, isto é, o pós-modernismo, resta sempre em nosso imaginário como uma anedota conservadora.O arrivismo de certa crítica fez coincidir os termos: “retrógrado” e “pós-modernsimo”. O pós-moderno acena com a possibilidade de restaurar de modo não sectário o diálogo com o passado, algo que parecia ter sido descartado com o advento das vanguardas do início do século 20 e que, de resto, estava pressuposto no projeto modernista de construir “a partir do zero”. Não obstante as controvérsias, o pós-moderno é legatário do maior valor do projeto moderno, a saber, a liberdade.

A poesia de Marco de Menezes, ao menos no livro em tela, parece estar imersa corajosamente e de forma livre nesse abismo pelaginoso de referências que tende a abafar as singulares vozes. Nisso vejo uma virtude. Explico porquê com uma recordação recuperada à estante do cinema.

Michelangelo Antonioni, no filme A noite (1961),faz o personagem Giovanni Pontano (interpretado por Marcello Mastroianni), um escritor em crise afetivo-intelectual, afirmar algo como “não fossem os prazeres, a vida seria suportável”, ao que replica sua esposa Lidia (Jeanne Moreau), mais ou menos assim, “que bela ideia, é sua?”, e Giovanni responde, “não, não é minha; não tenho mais ideias, só tenho memória”. Esse é também o desengano virtuoso que a poesia de Marco Menezes nos prega, sua poesia (já farta desse lirismo tacanho “que não é libertação”) se alegra com as influências, se sabe memória amorosa e irrupção sobre o acervo. E nem são tanto as referências, nem as escolas ou as escalas, mas, antes, a música cambiante subjacente à biblioteca performativa da poesia enquanto língua materna.

O fim das coisas velhasé, a uma só vez, a poesia tanto da tradição, quanto aquela só possível de ser levada a efeito pelo sujeito Marco de Menezes, e irredutível a quem quer que seja. O poeta se renova despretensiosamente sendo fiel à tradição graças aos desvios que opera tendo em vista as perspectivas do presente. Ele impõe o seu senso de ritmo seja à redondilha maior, seja ao alexandrino, metonímias das ferramentas do exercício. Esse aprendizado vivo (um como fazer) a partir do artesanato versificatório servetão só de base sobre a qual a poesia deO fim das coisas velhas pode ou pôde plasmar-se; um meio e não um fim. Lateralmente, sublinho algo a ser aprofundado futuramente, talvez em outro texto, a saber, que o verso livre de Marco de Menezes me parece próximo das estruturas melódicas de um William Carlos Williams (1883-1963). A comparação entre duas lâminas:

 

A rosa é obsoleta
mas cada pétala sua finda em
gume, a dúplice faceta
cimentando as estriadas
colunas de ar – o gume
corta sem cortar
encontra – nada – se renova
a si mesmo em metal ou porcelana –

aonde?
(tradução de José Paulo Paes)


(...)

mas já aí um cata-vento da pergunta
numa furna, uma cripta que murmura
o que guarda a casa, o que abriga um outro
não o que me olha, líquido,
mas o que sofro
no espelho que reboa?

Escolhi os excertos de forma aleatória, simplesmente abri os livros de um e de outro e os transcrevi. Entretanto, para a minha surpresa ambos fecham suas estrofes com um ponto de interrogação. Espero não estar forçando as coisas, mas percebo um “clima” (em sentido musical) comum a ambos: certas pausas, os cortes, a manipulação das palavras segundo uma sensibilidade háptica e, por fim, a impressão de que um poema (bom) fala de tudo e de nada ao mesmo tempo. Penso nesse encontro entre Marco de Menezes e William Carlos Williams não na perspectiva da denúncia da influência (que se eu tiver um pouco de sorte talvez não haja de fato), mas da confluência e da invenção do precursor.

Mas, ouçamos agora, por exemplo, a música dodecassilábica da poesia de Marco de Menezes, duas estrofes do poema “Calavera”:

eu sou gurrião-de-esquina do açougue 7
e fico ali varado cubando os moleques
uns velhos que gargalham diante do boteco
de vista presa na treliça de quatro anisetes

(...)

eu tenho as unhas sujas de tijolo e chuva
da cova aos rouxinóis eu chego num minuto
o Vô desfaz tarrafas com o Seu Morocho
dois dedos de cachaça feito cocurutos

Agora, duas quadras em redondilha maior (verso de sete sílabas) do poema “Um sonho em alicante”, e que dizem assim:

(...)

em teus cabelos de flandres
os dardos brandos de um anjo
perfume de cardos brancos
num disco de joão donato

em teus cabelos de plâncton
num boulevard de alicante
arrimos de dor dormindo
que o sono do mar entrance

Notar em ambos os trechos dos poemas a combinação, ou melhor, a dialética entre os estilemas da tradição e do agora-agora poéticos, agenciados numa atenção compartida entre a convenção e a surpresa: o uso da anáfora, “eu sou... eu tenho”, “em teus cabelos de flandres... em teus cabelos de plâncton”; a imagem-clichê do anjo, consagrada pela descrição diacrônica, mas tornada mais complexa, acima de tudo, pelo apetite simbolista; o embaralhamento paronomástico sugerindo migração e/ou intercâmbio de fonemas entre as palavras, “dardos brandos... cardos brancos”; o aproveitamento franco da rima toante cabralina (anjo/donato, alicante/entrance) que reitera uma coincidência assonântica sem resultar em eco monótono, previsível; a alternância de palavras mais preciosas e de expressões corriqueiras bem como regionais; arranjos sintáticos a partir da justaposição imagética conferindo maior vivacidade à canseira do discurso frasal direto; enfim, Marco de Menezes, como se diz no jargão do comentarismo futebolístico, é um artista que “tem os fundamentos”.

Mas, além disso, o autor de O fim das coisas velhas sabe jubilosamente que não há um problema da função poética ou de forma-e-conteúdo a ser resolvido. Cada poema inventa a sua própria indagação estética; uma chance de linguagem que se inaugura e se exaure. O poema é um problema-objeto verbal sem solução. Portanto, mais um brinde, salut!


17/04/2011

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Comentários:

Ronald, não somente provocaste teu leitor, também nos arremeteste, nova e eternamente, ao bom livro do Marco de Menezes. Voltarei a ele, de imediato para não perder nada do que levantaste, ou melhor, para encontrar algo novo a partir do que provocaste. Grato, PAULO TEDESCO
paulo tedesco, porto alegre 03/05/2011 - 11:05
Como sempre, aprendendo contigo teacher! Abs e parabéns,
Rosalva Rocha, Porto Alegre/RS 27/04/2011 - 13:21

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  Ronald Augusto

Ronald Augusto nasceu em 1961 no estado do Rio Grande do Sul. O escritor atua em inúmeras áreas: é músico, letrista, ensaísta e possui ainda um trabalho significativo no âmbito da literatura. Como poeta alcançou expressividade no cenário nacional e até mesmo mundial, de tal forma que suas produções foram publicados em revistas literárias, bem como em antologias, dentre elas destacamos: A razão da Chama, organizada por Oswaldo de Camargo (1986), a revista americana Callaloo: African Brasilian Literature: a special issue EUA (1995), a revista alemã Dichtungsring Zeitschrift für Literatur, e outras.

dacostara@hotmail.com
www.poesiacoisanenhuma.blogspot.com
twitter.com/ronaldpoesiapau


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