A obra A Fantástica Fábrica de Chocolate, de autoria de Roald Dahl, foi debatida em reunião da Confraria Reinações – confraria de literatura infantil e juvenil – www.confrariareinaçoes.blogspot.com. A Confraria Reinações reúne escritores e leitores de obras infanto-juvenis, em debates mensais na Livraria Letras & Cia, rua Osvaldo Aranha, 444, em POA.
De autoria de Jacira Fagundes, o texto de análise da obra:
A Fantástica Fábrica de Chocolate
Roald Dahl
A metáfora da felicidade
A obra de Roald Dahl (1916-1990) é marcada por histórias cuja referência recai nos sofrimentos familiares, aliados a lances mágicos tratados com ironia. A Fantástica Fábrica de Chocolate, livro bastante conhecido no Brasil, que teve adaptação para o cinema pelo próprio autor, é uma obra de alto valor literário que apresenta uma típica família da classe proletária, suas esperanças e penúrias; segue pela linha da magia e do fantástico chegando às raias do delírio, e com muito humor.
A história remete à fábula, de quando a sorte ou a fortuna recaiam sobre aquele que se destacasse por suas qualidades morais, pela obediência, paciência e abnegação. Aquele que se insurgisse contra os preceitos morais, no reino dos homens ou dos animais, haveria de sofrer as mais duras penas.
A história remete aos contos de fadas, onde os pertencentes às castas inferiores e os menos favorecidos eram agraciados e escolhidos por reis, príncipes e princesas para habitarem palácios suntuosos privando com a nobreza, e assim viverem felizes para sempre.
Detendo-se ora na fábula, ora no conto de fadas, na Fantástica Fábrica de Chocolate o leitor interage num campo bastante peculiar comum aos dois gêneros de literatura. Não será impróprio afirmar que tanto a fábula quanto o conto de fadas buscam, junto a ensinamentos, castigos e doses maciças de sabedoria, um bem maior, fantástico e de conturbado acesso - a felicidade.
Daí a razão de trazer para reflexão a questão da felicidade como metáfora na obra de Dahl.
O pequeno Charlie Bucket faz parte de uma família onde apenas o pai trabalha. A casa onde moram Charlie, a mãe, o pai e os quatro avós é minúscula e possui apenas uma cama, reservada aos quatro velhinhos. Todos da casa se alimentam pouco e mal. A barra de chocolate que Charlie recebe de presente, resultado de muita economia feita pela família a cada aniversário, constitui o momento esplendoroso de felicidade entre os familiares. Tanto é assim, que o menino permanece por semanas admirando a iguaria e adiando o instante dedicado ao grand finale, quando enfim dá vazão ao prazer de ir saboreando o doce aos pedacinhos dia após dia. A felicidade adiada, a recompensa pelos sacrifícios em tempo de abstinência, o sonho tornado realidade, tudo isso traz uma satisfação imensurável. Neste momento toda a família fica feliz.
“Na cidade, pertinho da casa de Charlie, havia uma imensa fábrica de chocolate. Imaginem só!”, anuncia o narrador. O leitor não só imagina, como divide com o protagonista toda a frustração de saber-se próximo da felicidade sem poder atingi-la. Dahl escolhe justamente uma fábrica, local onde é possível produzir sonhos de consumo, por tempos e tempos. E a fábrica produz chocolate!, numa variedade indescritível, em profusão, chocolate! Se não o maior, pelo menos o mais saboroso e incrível entre os maiores objetos de desejo em todo o universo.
E surge a oportunidade única. A de ser um dos cinco felizardos a encontrar o Cupom Dourado que acompanha apenas cinco entre milhares de barrinhas de chocolate produzidas pela fábrica cujo proprietário é o Sr Willy Wonka. O próprio Sr. Wonka promete receber a visita das cinco crianças sortudas e as conduzirá pelo interior da fábrica de chocolate numa viagem fantástica. E mais, dará garantia de provisão generosa de doces para a família da criança que conseguir chegar ao término da viagem. Pelo resto da vida.
A esperança precede a felicidade que pode estar à espreita logo adiante. O cupom dourado tem a mesma força do bilhete da mega sena, uma feliz caça ao tesouro, um pedacinho de papel que pode mudar destinos. O cupom dourado é o bilhete de passagem que dará acesso à poltrona Vip na aeronave rumo ao espaço sideral. Dahl é brilhante nesta trajetória que envolve o leitor em expectativas e esperança, embora óbvio. O leitor já é sabedor do desfecho, mas isto não lhe tira o valor. Nesta possibilidade habita a semente da felicidade, não aquela felicidade que se constrói, que se vai tecendo pouco a pouco no interior de cada alma, mas a outra, a que vem de fora com uma lufada de vento, trazida pela sorte, pela mão do destino.
Ao abrirem-se os portões da fábrica, o Sr. Wonka recebe de fraque de veludo e cartola o pequeno Charlie acompanhado do avô e as outras quatro crianças com seus pais. Sr. Wonka é o proprietário da fábrica, é ele o responsável pela produção do chocolate, iguaria sem similar. Ele se apresenta “com todo entusiasmo, os olhos incrivelmente brilhantes, decidido e cheio de vida, balançando-se de um lado para outro, todo o rosto iluminado de alegria e felicidade”. O autor nos apresenta um Sr. Wonka encarnando a própria felicidade. E é perfeita a relação, porque o Sr. Wonka está produzindo felicidade a pessoas; produzir felicidade é um ato essencialmente feliz.
A fábrica é deslumbrante, tudo nela é surpreendente e perturbador. As salas que o grupo, conduzido pelo Sr. Wonka, percorre numa velocidade obstinada, oferecem toda gama de invenções: cremes, gomas de mascar, balas, sucos, docinhos, pirulitos, tudo de açúcar, em vários tamanhos e formatos e em vários sabores. Rios e graminhas de chocolate, supervitaminas da marca Wonka, barras de chocolate que saem da tela da TV representam pequenas e grandes doses de felicidade ao longo do caminho, porém é preciso dispor delas com cautela e sabedoria. Podem oferecer perigo se tomadas com descuido ou arrogância. Ou então, por vezes a consistência ou as misturas podem necessitar reparos no preparo, “ainda não sabemos se está perfeito, tem umas coisinhas para acertar”, são recomendações do Sr. Wonka para uma das crianças metida e respondona. E assim é, nem sempre se está pronto para deter a felicidade, mesmo que dela a gente se aproxime. A avidez e o inconformismo poderão ser pedras aduncas no caminho, e levar o pretendente a potes vazios.
Dahl discorre sobre o comportamento de cada uma das cinco crianças, narrando cenas hilárias e amedrontadoras em igual medida, enquanto se diverte com as conseqüências desastrosas. A soberba e a tirania, a voracidade, a falta de limites e os mimos em excesso, a teimosia e o egoísmo acabam por provocarem acidentes lastimosos que interrompem a viagem fantástica para alguns. Já a paciência e o altruísmo são os ingredientes da recompensa e, obviamente, asseguram ao pequeno Charlie a chegada ao destino cintilante.
A felicidade não é racional. Para o autor, faz-se necessário conhecer um caminho de dificuldades antes de se atingir esta felicidade benfazeja, que vem trazida pelos ventos. Buscá-la e reconhecê-la é tarefa para os pobres de valores e de espírito, para aqueles que se movem pela fé e que acreditam na ventura, os que recolhem na simplicidade da vida a fração que confere o mágico e o fantástico, reduto inquestionável. A Fantástica Fábrica de Chocolate nos deixa esta lição. Falsa ou verdadeira, talvez valha pena conferir. Aos pais de hoje, fica a sugestão de leitura.
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