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Resenha

Quando Ela Era Boa: transmutação ficcional de fatos reais
Aletheia de Almeida

Os Fatos – A Autobiografia de um Romancista, de Philip Roth, despertou em mim aquela menina adormecida que colecionava obsessivamente conchas e bonecas; que, quando gostava de um livro, tinha que ler todas as publicações do mesmo autor; que quando tinha um hobby praticava-o exaustivamente, à perfeição. E, por isso, me fez pensar num desses desafios literários da atualidade em que se propõe ordenar as leituras e ir acompanhando a evolução da obra de um determinado escritor. Não sei bem se deslanchei o desafio, mas acabo de devorar o livro de Roth, descrito em sua autobiografia, que mais despertou minha curiosidade e que só ganhou tradução para o português em 2018.

Quando Ela Era Boa, de 1967, é o primeiro romance de Roth (que segue o volume de contos Adeus, Columbus e cinco contos, de 1959) e o único que conta com uma personagem-protagonista feminina, Lucy Nelson. Inspirada em sua primeira esposa, Margaret “Maggie” Williams – que, em Os Fatos, é alcunhada Josie –, Lucy, como Maggie, desperta sentimentos dúbios e é, a seu modo, bastante sedutora. Por causa da história de Josie/Maggie, de sua personalidade psicopata e do inferno que a mulher criou na vida de Roth, no início de sua carreira e em tão tenra idade, quis muito incluir Quando Ela Era Boa na minha coleção de Roths lidos. Para ter uma visão mais abrangente e para relembrar a autobiografia, fui a Roth Libertado – O Escritor e seus Sonhos (2014), de Claudia Roth Pierpont. Nele, a autora reforça a ideia, também expressa em Os Fatos, de que Maggie, a princípio, era o verdadeiro sonho americano do filho de imigrantes judeus, um tipo de troféu, um greencard, uma chancela de autenticidade para a identidade norte-americana desconjuntada de Roth. “Oriunda de uma pequena cidade do Meio-Oeste, protestante, olhos azuis, loiríssima, era a ‘encarnação pictórica’, como ele escreveria mais tarde, ‘das raízes nórdicas americanas’, vale dizer, de tudo pelo qual ele deixara a casa dos pais (...)” (p.56).

Essa miragem, no entanto, logo se distorceu em pesadelo. Casado em 1959, ano em que publica seu primeiro livro de contos, em pouco tempo Roth estava metido num emaranhado inexpugnavelmente sem saída. Obcecada, psicótica, ameaçadora, chantagista, suicida e desequilibrada, Maggie tornou-se um fardo tão grande para Roth que este viu sua fértil criatividade de início de carreira minguar até quase tornar-se pó. Foi preciso muita terapia e um desfecho trágico para Maggie, para que o escritor conseguisse uma solução para seu impasse, num momento tão crucial de sua carreira. Tanto Roth quanto Pierpont, ao relatarem essa passagem da vida do autor, destacam que Roth, apesar de paralisado em seu dilema, percebeu que, acima de tudo, a capacidade inventiva e ficcional de Maggie poderia ser inspiração e não, embotamento. Somente após muitas sessões de psicanálise, de um divórcio conturbado e da morte de sua ex-esposa num acidente automobilístico banal, é que Roth conseguiu libertar-se do fantasma de Maggie. Daí, seguiu-se o fabuloso divisor de águas O Complexo de Portnoy (1969) e, posteriormente, o expurgo necessário Quando Ela Era Boa (escrito depois de O Complexo, mas publicado antes, em 1967).

Para começar, Quando Ela Era Boa é filho único, órfão de mãe solteira. Não há em suas páginas os traços habituais do Philip Roth consagrado: não há sarcasmo, não há ironia, não há piadas nem personagens judeus – só o que há é a raiz de engenhosidade e de brilhantismo de seu texto, marcas indiscutíveis do autor. A impressão que se tem lendo Os Fatos e Roth Libertado é a de que o escritor precisava fazer “alguma coisa” com a história de seu casamento malfadado, transmutá-la em ficção para não sucumbir à realidade. Acredito que seja o porquê de Roth ver-se compelido a criar Lucy Nelson: ele parece não aceitar que, como escritor, em sua vida real, pudesse, além de ser ludibriado, deixar passar incólume a experiência verídica de ser manipulado por uma psicopata (e casar-se com ela) e de flertar de maneira tão próxima com o abismo existencial que era Maggie Williams. Para a sorte dos milhares de leitores que agremiou durante a carreira, Roth, ao invés de penitenciar-se e envergonhar-se pelo resto da vida, entendeu o potencial ficcional e de inventividade da vivência. No meu caso, Quando Ela Era Boa me jogou num turbilhão emocional, me fez chorar, me abalou, me deixou sem ar, quase sem pulsação.

A história se passa na década de 1940, numa cidade fictícia chamada Liberty Center, no meio oeste dos Estados Unidos. É Willard Carroll, avô de Lucy Nelson, quem abre o romance, uma espécie de novela épica, com traços de tragédia e drama. Willard oriundo de uma família pobre e tacanha, consegue deixar as matas longínquas e isoladas em que vivia e, a duras penas, estabelecer-se num emprego nos Correios e alcançar certa respeitabilidade na cidade adotada. Casa-se com Berta. Constroem uma casa e um lar. Myra, sua única filha a quem mima e protege, como se fosse um cristal prestes a se partir, une-se Whitey Nelson, um homem que, apesar de contar com um talento para consertar máquinas e equipamentos e de ter sido o atleta popular da escola, não se firma em emprego algum, é irresponsável e inconstante.

O jovem casal e sua filha, Lucy, moram indefinidamente na casa dos pais de Myra. Ainda assim, Whitey começa a beber e a bater em sua esposa, criando uma situação embaraçosa e de muito sofrimento para todos. Até determinado ponto da narrativa, Lucy é descrita por seu avô como uma menina feliz e inteligente. Depois, ela mesma passa a relatar como se torna arredia na escola, como se envergonha com o fato de a mãe precisar dar aulas de piano para sustentar o pai que, para a menina, é um mal-agradecido, uma sombra, um vexame. Não é por outra razão que sua adolescência se torna um tormento, e ela não consegue se encaixar em lugar algum, na sociedade ou em casa. Ensaia sua conversão ao catolicismo – pura afronta para sua família protestante e conservadora –, tenta fazer parte da banda da escola; mas, ironicamente, Lucy é sempre inconstante, como o pai, e abandona tudo a que se propõe a fazer. Assim é que começa a ver a ida à faculdade como a única rota de fuga possível. Trabalha arduamente para conseguir dinheiro para financiar seus estudos e sua independência dos avós e dos pais.

Lucy conhece Roy Bassart, por intermédio de uma prima do rapaz, uma das poucas amigas que teve na escola, Ellie Sowerby. Lucy sempre acreditava que as pessoas a julgavam por conta do histórico constrangedor de seu pai e, por isso, afastava-se antes mesmo de criar qualquer vínculo. De um lado, Roy é um veterano de guerra, muito jovem para carregar tal título; mas, por conta disso, respeitado em sua família e em Liberty Center. Por ter ido à guerra, todos demonstram muita compreensão com sua situação incerta, nesse momento de retorno à cidade natal. Roy sente-se perdido e não encontra uma ocupação que, em sua opinião, esteja à altura de sua experiência bélica. De outro lado está Lucy que não passa de uma garota, como tantas outras, ansiosa para se distanciar e distinguir da história de seus pais. Mesmo estando desesperada para libertar-se, mesmo sendo seu primeiro namorado e de não estar mais interessada em Roy (e, também, ainda que houvesse oposição das famílias Bassart e Sowerby), Lucy e Roy casam-se apenas para repetir a história de fracasso e de tormento de Myra e Whitey.

O que parece uma história banal, meio folhetinesca, é apresentada magistralmente, com descontinuidade temporal, um enredo misterioso e alternância de narradores - tudo amarrado e justificado. O texto não-linear nos mantém presos à trama: é preciso prestar atenção para entender quem é quem, o que aconteceu antes do que, as relações de causa e efeito sutilmente apresentadas. Como é Lucy quem conta a história (da mesma forma que Maggie, um dia, ofereceu uma versão muito peculiar dos fatos de sua vida a Roth, como forma de justificar ou escamotear sua psicopatia), a partir de um determinado ponto da narrativa, nos compadecemos de seu sofrimento e ela parece muito mais uma vítima desse meio familiar e social conturbado – apesar de que, o tempo todo, mesmo incorrendo em anacronismo, fica-se com uma sensação de que os dilemas são incompreensivelmente exacerbados e de que a personagem é um pouco superficial e histriônica. Acredito que por isso, no início, mesmo reconhecendo que Lucy se vitimiza e exagera os fracassos do pai, tende-se a ficar do lado dela, compreender sua vergonha, sua dor e suas escolhas: são os anos 40, é o pós-guerra no meio oeste dos EUA, está-se diante de uma outra escala de valores, numa sociedade naturalmente conservadora e retrógrada.

Em meio à concentração que o enredo exige, imbuído da missão de não perder os detalhes e as conexões entre os personagens, o leitor segue o texto que o conduz pelo emaranhado de pensamentos paranoicos de Lucy, por uma espiral de depressão, obsessão, loucura, tristeza e sadismo. O leitor oscila diante desse texto. É certo que Roy se aproveita da condição de ex-combatente para tomar o tempo que julga necessário para decidir o que quer fazer da vida. É igualmente evidente que o rapaz parece bastante mimando e nunca satisfeito com uma ocupação (ou uma parceira), uma vez que nenhuma condiz com seu status. Apesar de tentar fazer seu casamento dar certo e até de se apaixonar por Lucy e pela vida a dois, se contenta com muito pouco e sempre acredita estar sendo explorado em seu trabalho. É indeciso, falastrão, arrogante, malicioso, machista e está preso ao passado, aos 20 anos, achando-se vivido e superior. Lucy, por sua vez, despreza a figura masculina do pai e, desesperada para não se tornar sua mãe, vigia com olhos de lince cada passo que o marido dá, sempre temendo que se torne outro bêbado, vagabundo, irresponsável, incapaz de sustentar o lar. Sua missão é fazer de Roy um homem de verdade, algo com que, no seu entender, nunca conviveu (o que, por si só, é uma injustiça com o avô que a criou e educou). Oscilando e avançando na leitura, constata-se o quão absurdo é o grau de envolvimento que o texto proporciona. O leitor termina o livro atordoado, torcendo por um fim da tortura a que Lucy submete o marido e esquecendo a pouca empatia que a heroína havia conseguido despertar no início.

Em Os Fatos, Roth afirma que se habituou a ouvir Josie/Maggie falando mal do pai, do ex-marido (pai de seus dois filhos) e de seus relacionamentos anteriores. “Eles” eram imperfeitos, “abomináveis”, irresponsáveis, maltratavam-na, quase a destruíram. Roth sentia pena das injustiças infligidas a Josie, “se perdia em fantasias de machismo heroico”, assumiu “o papel do “imaculado cavaleiro judeu que lutava contra os piores dragões góis para salvar” seu idílio americano (p. 102-103). No entanto, na medida em que a relação foi-se deteriorando e Josie começou a usar o adjetivo “abominável” para descrever o próprio Roth, a miragem começou a dar sinais de se esvair, dando lugar a uma “mulher com narrativas” capazes de autodestruí-la e de aniquilá-lo. “Acho agora que o gosto inato pela justaposição dramática, a paixão por contrastar perspectivas aparentemente incongruentes, foi o que me encorajou a revelar com tais pormenores emocionais uma [tal] recordação” (pg.100).

Roth parece transmutar Maggie em Lucy, retirando-a do lugar de vítima em que ela mesma se colocava; desvelando, de uma forma até condescendente e redentora, uma possível verdade que justificasse as distorções de personalidade e de caráter de sua ex-esposa. Lucy é uma espécie de personificação doentia de Maggie, de sua vontade de espezinhar todos os homens – apenas por serem homens como seu pai. Lucy e sua trajetória em Quando Ela Era Boa devem ter sido uma das formas que Roth encontrou para defenestrar definitivamente Maggie e a história psicótica de seu primeiro casamento. É um romance seminal que não teve tanto impacto, junto à comunidade judaica, por exemplo, quanto Adeus, Columbus e O Complexo de Portnoy. Foi escrito por um autor que ensaiava burlar, para subverter, as convenções e influências literárias de então, a fim de criar seu próprio estilo, de iniciar sua própria jornada. Quando Ela Era Boa foi o exorcismo urgente, fruto de muitas sessões de psicanálise, que possibilitou a consolidação da carreira do escritor que viria a ser Philip Roth.

21/11/2019

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  Aletheia de Almeida

Aletheia de Almeida é mestre em Relações Internacionais e há um bom tempo atua profissionalmente na área de cooperação internacional, no governo brasileiro. Natural de Brasília, já morou em Buenos Aires, Atlanta e Rio de Janeiro. É apaixonada por seus dois filhos e pela literatura. Seus maiores prazeres são ler, viajar, tomar um bom vinho e exercitar (se tudo junto, melhor ainda!). Sua meta na vida é alcançar todo e qualquer equilíbrio. Quem sabe pela escrita?

aletheiaalmeida@gmail.com


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