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Resenha

Cohab Goya
Elenilto Saldanha Damasceno

"Cohab Goya" é o novo livro do poeta e músico leopoldense Éverton Luiz Cidade, publicado pela Editora Folheando. Estilisticamente, surpreendem e arrebatam o esmero e a mestria do autor na exploração de figuras de efeito sonoro, principalmente a aliteração (repetição de consoantes) e a alternância de sons semelhantes na estrutura interna de vocábulos diferentes, e de recursos sinestésicos (evocadores de diferentes associações e impressões sensoriais).

A coletânea de poemas está organizada em três seções: "Paliativos psíquicos", "Poemas simples sem açúcar/com saudade" e "Santão".

"Paliativos psíquicos" apresenta doze poemas. Essa seção pode ser subdividida em duas partes: uma constituída pelos dez primeiros poemas, todos curtos, enumerados e sem título; outra formada por dois poemas com maior extensão e títulos.

Os dez poemas iniciais relacionam-se a um projeto que Cidade desenvolveu em 2020, durante o período de isolamento e restrições sociais impostas pela pandemia de Covid: uma série com "dez videopoesias produzidas por ele (poesia e voz) e Ícaro Estivalet (som e imagem)" (ROSA, 2022) através de auxílio emergencial via Fundo Municipal de Cultura de São Leopoldo/RS. Toda a (sobre)carga de emoções, sensações e perturbações psíquicas experimentadas durante esse tempo de isolamento social constitui a unidade temática entre esses poemas. De certa forma, a Poesia desponta como paliativo ou atenuante de tantos traumas e transtornos psíquicos desencadeados nesse período marcado pela "paisagem de morte" a qual se instalou de vez, com todo seu horror, em fevereiro de 2021. "Herdamos as mortes do carnaval". No ápice do caos pandêmico, milhares de mortes diárias nos levaram a suplicar pelo fim de tanto sofrimento, pela "Páscoa da misericórdia". O corpo, tanto o individual quanto o coletivo, sofreu e adoeceu também psiquicamente, mas resistiu e sobreviveu, pois "o corpo não é castigo, é uma dádiva. Os males não validam a vilania". Haverá "dias de regeneração"? O último poema alimenta essa possibilidade, através da união de quem sempre mais cuidou e educou: "os leões estão com sono, as leoas em comunhão".

Os dois poemas finais dessa primeira seção parecem um conjunto à parte. "Onça onça" e "Onça carajía" destacam-se em outro aspecto recorrente e marcante na lírica de Cidade, a rica e impressionante cosmogonia alicerçada em representações de diferentes mitologias sobre caos, criação ou gênese, apocalipse ou fim. Nesses poemas, as mitologias de nossos povos originários confrontam-se com as de outras fontes, especialmente a judaico-cristã, historicamente empregada, na América Latina, nos processos de colonização genocida. "Paranoias de crenças cosmogêmeas" em conflito resultam nos "sacrifícios de sangue na América isolada" na luta "contra o povo branco das nuvens", o povo evangelizador. Assim, o "Deusinho ameríndio do corpo latino" desponta como "dedo mindinho da civilização". De certa forma, esses poemas estabelecem a transição dessa seção para a seguinte, na qual a perspectiva periférica desponta em posição de centralidade.

Essa posição de centralidade é contemporânea, e essa perspectiva constitui o eixo central e unificador dos dezenove "Poemas simples sem açúcar/com saudade", todos curtos, enumerados e sem títulos, os quais compõem a segunda seção. O topus de representação dessa perspectiva é o universo "Cohab Goya", que dá título ao livro.

Cabe ressaltar dois aspectos relacionados a esse universo. O primeiro é explícito: a presença de elementos autobiográficos. Éverton Cidade viveu infância e juventude na Cohab-Feitoria, conjunto habitacional popular construído no início dos anos 80 no extremo leste do município de São Leopoldo, cidade da região metropolitana de Porto Alegre. Com o passar do tempo, o núcleo habitacional transformou-se em espaço afetado pela violência urbana em contexto de vulnerabilidade social. O segundo aspecto, subentendido, é a referência ao pintor espanhol Francisco de Goya (1746 - 1828), considerado um dos precursores da Pintura Moderna, cuja obra é marcada por uma transição pela qual se tornou inovadora e altamente expressiva, com elementos e temáticas desconcertantes, profanas e sombrias. De certa forma, a poética de Cidade flui nessa direção. Por isso, penso que não é à toa que a capa de "Cohab Goya" suscite a ideia de pinceladas de tinta amarela em uma tela ou superfície violeta. Assim como Goya, Cidade inova e rompe formas, estilos e conceitos. Poeta de "contraconceitos" (SILVEIRA, 2022), é "um poeta sofisticado e pop, profano e religioso, vadio e santo na colocação das palavras, antigo e hipermoderno na escolha dos temas, contrastes potentes de magia que nascem a toda hora em cada página do livro" (JULES, 2022).

Essa segunda seção da coletânea, "Poemas simples sem açúcar/com saudade", "remete claramente à infância e adolescência do poeta, entre perrengues, crises de asma, bailinhos e amassos, descobertas e abandonos nas periferias e esquinas de uma vida nem sempre doce, mas muitas vezes sim. Cidade nos conduz, como um artífice-anfitrião-simpático-e-sombrio, por versos que podem ser intensamente sensoriais e visuais" (SIMON, 2022). A "Cohab, que tão pouco se sabe os segredos", revela-se através do olhar e da vida que se alimenta do próprio ambiente de sua existência, como um "bichinho dentro da goiaba". Há uma simbiose complexa e profunda entre eu-lírico, espaço-personagem e autor.

As vivências da infância e da juventude nessa comunidade mostram-se afetadas pela pobreza e pelos frutos que dela derivam: a violência e o medo. Desde o início, o poeta se apresenta como quem "deriva do que devora". Nessa sobrevivência antropofágica, se faz necessário devorar aquilo do que se deriva para não ser devorado. "Cohab Goya" é esse universo em que a "tragédia namora" jovens e crianças, ambiente onde, para subsistência e afirmação, meninos e adolescentes tornam-se "todos galinhos curtindo a rinha", metidos "em bravatas, a chutarem bundas e latas, galinhos garnizés criados às tundas e pontapés, ou sem pai nenhum". Em suas "vilanias baratas", tinham a vida marcada e/ou abreviada pela violência. Dia a dia, "havia os mortos sob seus pés, validando sua infância de passos tortos" e, "ainda muito meninos, eram-lhes postas as tábuas de seu destino". Todavia, nesse mesmo universo, a vida é matéria para a Arte, e cabe ao poeta moldado pela matéria bruta da vida revelar que a Arte faz parte dessas vidas, mesmo que sejam invisibilizadas. Cabe especialmente ao poeta revelar que nesse espaço também opressor enquanto perpetuador da masculinidade tóxica que se associa a formas similares de violência relacionadas à desigualdade social e à cor da pele há também a potência latente de transformação através do convívio comunitário, da Educação e da Arte, pois em tais espaços também vivem e convivem "o avô delicado, o pai dedicado", o educador, o artista periférico, homens como o poeta que foi menino-artista "no viés das rimas" e hoje testemunha: "Eu escrevia gazéis pra esses meninos em seus lutos".

Também relacionada às vivências e experiências em "Cohab Goya", "Santão" é "a terceira e final parte do livro, escrita em poema único de dez páginas, num só fôlego, carregando o leitor pelo colarinho e o fazendo rodopiar a dois palmos do chão em experiências e percepções [...], colocando no texto a forma como o poeta se vê e como interage com o mundo que ele habita" (SIMON, 2022).

Nessa seção, um aspecto que sobressai em relação à anterior é a presença de personagens/pessoas que se afirmam com independência no poema narrativo (ou na prosa poética). Além de Cida, despontam Santão, Iara, Roger, Sininho Balido, Cassius Caralho, Dani Mão, Zé Pé, Mãe Menina Baixa e Lourdes (a mãe do Sol).

Os versos estabelecem um ritmo alucinante de realidades internas e externas, o rodopio de experiências e percepções mencionado anteriormente (a meu ver, um vendaval). É como se houvesse "uma cadência anárquica criando estes compassos" (SILVEIRA, 2022), pois o descontrole é a dinâmica de (des)organização da experiência. A regra é o desregramento, seja em direção ao céu ou ao fundo do poço. Santão representa um amigo querido e maldito, por vezes insano e que, em um instante de lucidez num contexto de total descontrole, talvez tenha (ben)dito o que precisava ser ouvido: "VAI PRA CASA, CIDA, VAI! É BOM TE VER ACHAR QUE ACREDITA NO QUE DIZ E MENTIRMENTIR MENTIR MENTIRMENTIR MENTIR MENTIR MENTIR".

Não abordarei as demais personagens, pois o último verso traz a promessa de que o enigmático poema (ou enredo, ou roteiro, ou canção) "Continua...". Haverá mais a conhecer e a revelar-se antes de alguém ousar resenhá-las com propriedade e sentido. Só Cidade estaria apto a isso, e ele próprio confidenciou-me que "Santão" é "como um borrão de febre, que tempo e espaço não existem, que o poema é um sonho num filme de David Lynch, que as personagens são vórtices de outras personas". Portanto, o tufão tem força para ejetar a muitas possibilidades ainda desconhecidas e muito além do meu campo de visão.

Contudo, ainda com "Santão", concluo com comentário sobre uma questão proposta e respondida em versos:

"Será que ele puxou os fios que ligam uma periferia a outra antes de morrer? (...) Se ele o fez, eu não saberia porque estava me dedicando a ficar louco".

Santão "não foi um primeiro amigo a morrer nem o primeiro a ser conhecido já morto". Também não foi o primeiro amigo a abandonar seu amigo. Porém, em "Cohab Goya", Santão é uma das personagens/pessoas que, enquanto vive e também após morrer, liga uma periferia a outra, liga uma periferia a tantas outras. Particularmente, Santão também é um dos fios lírico-narrativos que ligou dois homens de uma mesma cidade e de uma mesma geração, um escritor-poeta e um leitor-resenhista oriundos de regiões periféricas geograficamente opostas dessa mesma cidade. Ligou um grande poeta e músico que viveu sua infância e juventude na Cohab Goya Feitoria a um professor e escritor "caretão" que viveu sua infância e juventude na Baixada, na Vicentina, na região um dia conhecida como Chácara da Prefeitura. Ligou experiências, vozes e olhares periféricos que se reconhecem, se compreendem e se reafirmam, a partir de experiências comuns e também diversas. Há um fio que os liga, que foi puxado e os aproxima. A Literatura é esse fio, e em cada ponta dele, havia um homem predestinado a ser amigo do outro.

Se liga também! Leia e se surpreenda com "Cohab Goya"!

14/10/2022

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  Elenilto Saldanha Damasceno

Escritor, revisor, jornalista, editor e professor. Mestre em Letras/Estudos de Literatura e especialista em Literatura Brasileira (UFRGS), graduado em Letras e em Jornalismo (Unisinos). Participante do curso de formação de escritores e de oficina de revisão textual, preparação de originais e leitura crítica (Metamorfose). Autor de "Curta ficção" (Metamorfose, 2023) e "Textos do Novo Testamento nas crônicas de Machado de Assis" (Dialética, 2021), obra finalista do Prêmio Ages 2022 na categoria não ficção. Autor de contos publicados nas coletâneas "Navalha, veneno, mistério" (Metamorfose, 2023), "Contos reunidos 2022" e "De volta aos anos 60" (Metamorfose, 2022), "Prêmio Off Flip de Literatura 2022: conto (Selo Off Flip, 2022), "A vida aqui não é fácil" e "Contos reunidos" (Metamorfose, 2021) e "Prêmio Off Flip de Literatura 2021: conto" (Selo Off Flip, 2021), nesta como finalista. Revisor de "O que sei de você: histórias que poderiam ser suas", de Claudio Varela (Metamorfose, 2023) e "Olhos lilases", de Jonattan Rodriguez Castelli (Metamorfose, 2023). Editor da revista Expressão Digital. Colunista nos sites Artistas Gaúchos, Escrita Criativa e na revista Paranhana Literário. Desde 2008, autor de artigos acadêmicos, artigos de opinião, crônicas, ensaios e resenhas publicados em jornais, revistas e sites. Professor de Língua Portuguesa e de Literatura na Fundação Escola Técnica Liberato Salzano Vieira da Cunha e professor no curso de formação de escritores da Metamorfose. Mais informações em http://www.eleniltodamasceno.com.

eleniltosd@gmail.com


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