Impulsionado por Érico Veríssimo, um dos maiores escritores do seu século, o médico psiquiatra, Dyonelio Machado, não poupou energias para produzir uma das narrativas mais influentes da segunda geração modernista brasileira. Depositou em papel nove anos de mastigação mental sobre a trama sugerida por um fato acontecido com a própria mãe. Nove anos esteticamente bem dispostos sobre um instigante enredo, escrito durante vinte uma noites do mês de dezembro de 1934.
Ainda que um homem calado pelas mordaças totalitárias do regime Vargas, Dyonelio foi capaz de dar voz a um narrador intimamente provocador e, a um só tempo, complexo e complexado pela angústia do protagonista da estória. A partir do enquadramento-destaque das aventuras e desatinos do pobre-diabo Naziazeno no decorrer do romance, a narração distancia-se de academismos e recalques literários para preocupar-se com a aproximação das relações urbanas das camadas mais populares da sociedade brasileira – retocando estruturas desenvolvidas para documentar e explicitar o indivíduo psicológico num ambiente não ocasionalmente regional. Alfredo Bosi (1994) ressalta que o autor “tem escavado os conflitos do homem em sociedade, cobrindo com seus contos e romances-de-personagem a gama de sentimentos que a vida suscita no âmago da pessoa” e, quanto à inserção do modelo popular, comenta que “Dyonelio Machado, gaúcho, fez, em Os Ratos, uma reconstrução miúda e obsedante da vida da pequena classe média relada pelas agruras do cotidiano”.
A responsabilidade de narrar a desenvoltura do personagem que precisa sanar uma considerável dívida com seu leiteiro no prazo de vinte e quatro horas abarca uma linguagem engajada em acompanhar o pensamento (e a imaginação) de um homem extensamente preocupado com as ferramentas responsáveis por resolver seu problema. Para tal execução, elimina-se o conceito linear e real de tempo; extermina-se a ordenação lógica de eventos dentro de uma ação hierarquicamente maior. Constrói-se, afinal, hipóteses de situações geradas mentalmente pela sensação angustiante da aflição. Casos como esse estão explicitamente situados em trechos como o seguinte:
Ele não pode deixar de se figurar a sua entrada no gabinete. O diretor “está” só, escrevendo, a cabeça enterrada no vão da escrivaninha de cortina. “- Dá licença?” “- Entre.” “- Doutor...” “- Eu compreendo essas coisas, Naziazeno.” - O diretor tem a voz suave. Ele é moço.
Com os sessenta mil réis “no bolso”, ele quase que “sente” remorsos. Devia “ter pedido” os cinquenta e três exatos. Para ficar na verdade, na estrita verdade. Como compensação, “gasta” essa diferença em coisas úteis, pra a casa...
É preciso ocultar à mulher o modo como “conseguiu”. Chega e entrega-lhe o dinheiro, ante a boca grande que ela abre. Se ela fizer perguntas, arruma-se com umas evasivas. Ele não pode perder o prestígio de marido, que vai, vira e cava. Ela fica assim imaginando o “esforço”, e ele está quite com ela e com todas aquelas humilhações... (p. 25)
Claramente se vê, nesses parágrafos extraídos diretamente da obra, a sequência hipotética dos acontecimentos figurados por Naziazeno. Primeiramente, passa a imaginar-se estando com o diretor e este lhe dando o dinheiro – sem qualquer tipo de impedimento. Logo depois, cria uma série de situações ordenadas e baseadas naquela primeira imagem, construindo, assim, uma bola de neve imaginária – uma hipótese psicológica.
Dentre esses transtornos individuais do protagonista, o narrador faz questão de acompanhá-lo e partilhar dessas probabilidades, sensações, sentimentos e imaginações – desenvolvidas através das barreiras e conflitos impostos à trama e ao desenrolar da estrutura do texto. Entre queijos e ratos, enfim, o narrador toma conta das aventuras psicológicas de um ser razoavelmente razoável, e, assim, aventura-se a sofrer a intermitência temporal da desenvoltura do pobre-diabo.
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