Resenha
Um exagero que deu certo em Tudo ao mesmo lugar o tempo todo
Érica Jorge
Era só mais um domingo em que meu corpo suplicava por descanso, o cansaço arrastava meus membros de um lugar a outro da casa, sem fazer parada em nenhum deles até que vi o sofá vago. Geralmente ele é ocupado pelos meus filhos, abduzidos por algum desenho, ou pelo meu marido jogando games distópicos que me fazem, por alguns minutos, desacreditar de meu casamento.
Meu sofá é daqueles que se espicham e abraçam a umas quatro pessoas deitadas. Naquela tarde, fui eu quem o agarrou. Fechei as cortinas da sala por onde invadiam, sem pudor, raios solares fortÃssimos. Eu poderia aproveitar a praia que fica a metros da minha casa, mas meu corpo vagava sem forças.
Virei de um lado, virei para o outro, espreguicei, me estiquei, testei movimentos e posições variadas, era bom estar sozinha na imensidão daquelas almofadas, sem ninguém a me pedir nada. Não sei qual foi o mistério, mas marido e filhos se refugiaram em outro cômodo e eu fiquei livre para mim. O ócio é maravilhoso, mas quando você não o convida a fazer parte da sua rotina ele chega carregando a plaquinha da culpa “por que não aproveita o tempo para fazer uma corrida?”, “não seria melhor finalizar a leitura daquele livro e o capÃtulo que estava escrevendo?”, “e os armários lotados de roupas para passar”. Nossa, que raiva! Eu deitada no sofá brincando de contorcionista, mas a minha mente rÃgida só me enquadrava. Eu poderia ter cedido, mas não. Apertei o botão da televisão e resolvi procurar por um bom filme. Esse é outro tema interessante das minhas crônicas da vida privada. Antes, eu assistiria a qualquer filme, exceto aos de terror, sempre tive aversão a eles. Mas os meus quase 40 anos me trouxeram uma seletividade tão rÃgida quanto a minha mente. Rodei as listas por alguns minutos e parei no “Tudo ao mesmo lugar o tempo todo”. Hum, vencedor do Oscar?, me pareceu interessante, ainda que a plataforma MUBI seja a que mais me atraia ultimamente. Mas aquele domingo não era pro MUBI, era de Oscar mesmo. Dei o play.
Alguns minutos de uma história convencional, mãe e pai sustentando a famÃlia pobre com o pouco dinheiro adquirido de uma lavandaria capenga, onde os clientes - e não as roupas - é que deveriam ser arremessados nas máquinas pra ver se saÃam menos preconceituosos e arrogantes. Seria bom uma lavanderia de comportamentos, resolveria tanta coisa nesse mundo doenteÂ… era o filme já cumprindo seu papel, se as próximas cenas não fossem boas, ao menos a ideia para um conto eu já tinha.
As cenas que se sucederam são difÃceis de narrar, uma miscelânea da personagem principal em várias realidades paralelas, como se fossem outras vidas, passadas e futuras. reflexão filosófica sobre o tempo está presente durante toda a pelÃcula e, talvez pelo fato de eu me aproximar bastante dessa perspectiva, gostei de ver reforçada a ideia de que o tempo é relativo e de que a cada decisão mÃnima que tomamos, um mar de possibilidades acontece. Para toda ação, há sempre uma reação oposta e de igual intensidade. A teoria newtoniana apareceu em várias cenas, Einstein e sua relatividade também, mas é com os multiversos que o filme dialoga diretamente.
Os personagens não se camuflam, mas verdadeiramente estão em outros lugares, com identidades diferentes coexistindo ao mesmo tempo. Falando nisso, a palavra verdadeiramente (que citei há pouco) fará sentido segundo a teoria dos multiversos? O que é verdade, afinal? O meu universo ou os outros? Perguntas que nos fazem questionar a nossa visão egoÃsta de mundo: o meu mundo, a minha verdade, a minha religião, a minha cultura, a minha lÃngua, a minha etniaÂ… nos multiversos não há apenas o meu, mas a obrigatoriedade de entendermos outras possibilidades de existência.
“Tudo ao mesmo lugar o tempo todo” contribui ainda com as discussões psicanalÃticas quando aponta a relação difÃcil entre pai e filha ou ainda entre mãe e filha. A estética do filme é a do exagero e contrapõe o bem e o mal, o belo e o grotesco, a doçura e a ira, o amor e a indiferença, não de forma a optarmos por qualquer uma das extremidades valorativas. Ao contrário, nos multiversos a mesma personagem é rica, pobre, famosa, desconhecida, amável e violenta. Logo, são os multiversos internos postos à mostra. Os ideais românticos de elaboração de personagens são substituÃdos por pessoas complexas, assim como nós.
O cansaço era grande naquele dia, confesso que cochilei brevemente lá pelos trinta e poucos minutos, mas uma vez que voltei à cena, fui até o fim. Meu corpo, que no inÃcio se contorcia no vasto sofá, foi cedendo espaço para as emoções dançarem. Enquanto eu assistia ao filme, o que eu estaria fazendo nos outros multiversos?
Érica Jorge é doutora e Mestra em Ciências Sociais pela UFABC. Bacharel e licenciada em Letras pela USP e em Ciências Sociais pela UNIMES. É professora de LÃngua Portuguesa e Inglesa da Rede Municipal de Ensino de Itanhaém e atua como docente em duas faculdades nos cursos de Pedagogia e Administração. Além da atividade educacional, é escritora e poeta. No ofÃcio literário, integra o Portal Fazia Poesia, o Clube de Escrita para mulheres e o Coletivo Escreviventes. Possui poemas e contos em antologias e é autora do livro "Eu, Iyawo".
02/04/2023
Comentários:
Envie seu comentário
Preencha os campos abaixo.
Resenhas
As resenhas pubicadas no portal Artistas Gaúchos são de inteira responsabilidade dos articulistas. Se você deseja enviar um texto, entre em contato com o editor do portal. Não é necessário estar cadastrado no portal para enviar resenhas e a veiculação ou não é uma escolha editorial.
Colunas de Resenhas:
Selecione
Sobre o livro Mirando o Gol Acertando as Estrelas de Carol Canabarro (08/10/2024) Se ela não entendeu, imagine eu: sobre "O ovo e a galinha", de Clarice Lispector (23/09/2024) Em agosto nos vemos (13/08/2024) Irei quando o tempo estiver bom: um reconfortante elogio à literatura (10/08/2024) Josué Montello (06/08/2024) O último conhaque: um encontro com as desventuras do viver (24/06/2024) Mr. Pip, do neozelandês Lloyd Jones (02/11/2023) Escrever Ficção: um manual de criação literária (05/10/2023) O passado que nos habita (12/09/2023) Ausência na Primavera (17/08/2023) Sadie: uma história sobre coragem e resiliência (05/08/2023) A outra margem de Rachel Baccarini (28/07/2023) O Caçador de Pipas (05/07/2023) Um exagero que deu certo em Tudo ao mesmo lugar o tempo todo (02/04/2023) A Bússola de Ouro, Phillip Pullman (27/03/2023) Eu me recuso a ser o outro (16/03/2023) Uma história imperdÃvel de amor e erotismo na maturidade (11/10/2022) Velha Sabia e Eu, de Sandra Eliane Radin (07/08/2022) Muito a dizer (05/04/2022) Não há conforto ao assistir Coringa (21/02/2022) Memes, a origem (11/02/2022) A complexa vida de Maria (18/11/2021) A Fábula do Cuidador (11/10/2021) Sofá Azul : crônicas do inesperado (02/09/2021) O que nos empurra a viver (12/08/2021) O homem invisÃvel e o grande irmão, entre alguns outros de seu tempo (05/08/2021) Inveja, de Iuri Uliécha (05/07/2021) O Velho e o Mar (25/06/2021) O diálogo entre Jorge, de "Lambuja", e LuÃs da Silva, de "Angústia" (09/06/2021) A pane, de Friedrich Dürrenmatt (06/05/2021) O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (05/01/2021) Desenhos e Esperanças (25/12/2020) Por favor, abram as câmeras! (21/12/2020) Little fires everywhere (Pequenos incêndios por toda parte) (21/12/2020) Meia-noite em Paris (05/12/2020) Mary Shelley: Criadora e criatura (05/11/2020) Audiolivros são livros ou radionovelas? (21/10/2020) Algumas impressão sobre o filme Slumdog Millionaire (Quem Quer Ser Milionário) (17/10/2020) Mia Couto no Fronteiras do Pensamento 2020 (13/10/2020) A explosão Enola Holmes (13/10/2020) Um mergulho na alma (08/10/2020) Na Natureza Selvagem (06/10/2020) O Dilema das Redes: Um Alerta (04/10/2020) Por que o homo sapiens se tornou a espécie dominante de todas as que coexistiram no planeta Terra? (04/10/2020) Como Criar um Monstro (24/09/2020) Perdas e Ganhos, de Lya Luft (22/09/2020) A cor do outro (22/08/2020) Estela Sem Deus (12/08/2020) Os Bastidores de Emma (10/08/2020) Mulheres que correm com os lobos: Uma obra transformadora (05/08/2020) O último abraço que eu não te dei (28/07/2020) Desventos (12/07/2020) Desde a pré-escola: a apropriação do sistema de escrita (12/11/2018) A nova ordem mundial é um apaziguamento (17/10/2018) Sua Itália já estava perdida (20/04/2018) O jogo da memória de Maria Rosa Fontebasso (08/02/2018) SOBRE YOSSEF, O judeu errado, de José Carlos Rolhano Laitano. (31/08/2016) Arrastão de solidões sentidas no travo da poesia (22/07/2015) Memórias de um legionário, o livro de Dado Villa-Lobos (04/06/2015) A Mão de Celina, um livro que não dá para parar de ler (08/07/2014) Brinde Noturno & Outros Poemas: você tem coragem? (04/09/2013) Rio turbulento da literatura: em busca de reconhecimento (23/05/2013) A Prosa Afiada dos "Contos de Amores Vãos" (22/04/2013) Prosa poética (07/02/2013) Cárcere literário, com prazer (22/01/2013) A gangue dos escribas gambás (11/01/2013) E aÃ, faliu? (14/12/2012) Luiz Coronel (07/11/2012) Estelionato autoral na rede (26/09/2012) O vendedor de cocadas (12/09/2012) Herman Rudolph Wenroth (06/09/2012) Centenário de Jorge Amado o escritor que melhor escerveu o PaÃs (27/08/2012) A Festa (21/08/2012) Vida longa à poesia (08/08/2012) Sobre a escrita e seus restos (08/08/2012) Vou botar meu carro-bomba na avenida (24/07/2012) O Triste fim do Direito & Literatura TVE/RS (13/07/2012) Cinema gaúcho para brasileiro ver (11/07/2012) Passar de ano é sinônimo de aprender? (04/07/2012) Felipe Azevedo: “Tamburilando Canções – Violão com Voz” (20/06/2012) Mario Quintana (30/05/2012) Sobre a polêmica 27ª. Feira de Livros, de Bento Gonçalves (30/04/2012) Houve um Verão (17/04/2012) Oficina de criação literária (13/03/2012) Os jovens e a cultura da violência (03/02/2012) A Internet e a Literatura (20/01/2012) Estranhamentos e fronteiras (09/01/2012) Notas fúnebres e musicais (12/12/2011) O peso do medo, de Wellington de Melo (24/11/2011) Os três cenários de Santiago (22/11/2011) Digital para crianças (03/10/2011) Resenha do livro de Charles Kiefer (21/09/2011) Um narrador inusitado dentre queijos e ratos (05/09/2011) Jorge Luis Borges (23/08/2011) A bunda de Gerald (05/08/2011) A Verdadeira História da Camisa Amarela (04/08/2011) Aos olhos da poeta (02/08/2011) Amy, no caminho da linha invisÃvel (28/07/2011) Concursos Literários (20/07/2011) A Tela de Cinema e o Texto (20/07/2011) Peripécias para o bem (20/06/2011) Do primeiro ao último bonde (12/06/2011) Direito de autor, internet e democracia (08/06/2011) Academia Brasileira de Letras de Câmbio (08/06/2011) A Internet e o Livro (02/06/2011) O Enigma Do Tempo Retido Nos Museus (20/05/2011) Diversidade LinguÃstica no Brasil (06/05/2011) Rui Biriva, deixou de estar entre nós (27/04/2011) O Cisne Negro (01/04/2011) Depois dos impressos, a vez do digital (23/03/2011) Grafite, o grito mudo da arte rebelde (17/03/2011) A construção de um preconceito e a arte de Rodrigo Braga (12/03/2011) Scliar e a sucessão literária (03/03/2011) A Perda de um Grande Escritor (05/01/2011) Artistas negros no Brasil (10/12/2010) A Literatura Infantil em Casa e na Escola (28/11/2010) O despertar da primavera (01/11/2010) Dar de graça ou viva a internet (04/10/2010) As Feiras do Livro são uma festa (04/10/2010) A mitificação do gaúcho (27/09/2010) Independência ou Música (07/09/2010) O ciclo do gaúcho a pé: Estrada nova (24/08/2010) Vida longa à poesia (23/08/2010) A Internet está nos deixando idiotas? (16/08/2010) O valor do livro, da leitura e da literatura (10/05/2010) No Carnaval, bom programa é o carnaval de Porto Alegre (09/02/2010) Sobre Percussìvé, de Felipe Azevedo (14/01/2010) Feira do Livro de quem? (16/12/2009) A Feira do Livro de Porto Alegre entre os interesses do mercado e os da sociedade (30/11/2009) O que nos fará continuar visitando a Feira do Livro de POA (18/11/2009) Entre a pena e o pincel: Papo de Artista na Feira do Livro (16/11/2009) Save the Date (22/10/2009) Desbravadores do Miniconto no RS (18/09/2009) Onde está o busto de Apolinário? (27/08/2009) A valorização do diploma em regência coral (13/08/2009) Gestão coletiva de direitos autorais, a experiência brasileira (21/07/2009) Vende-se uma manchete! (14/05/2009) A relação do artista com a mÃdia e a arte da boa comunicação (14/05/2009) Papo debate as artes plásticas na terra da Bienal do Mercosul (e da B) (02/04/2009) Sobre o Mercado de Arte (26/03/2009) Carta a Machado de Assis (17/03/2009) CrÃtica da CrÃtica de Arte (11/12/2008) O livro eletrônico (02/12/2008) Respeito aos Direitos Autorais (18/11/2008) Carta aberta à governadora (13/11/2008) O reality show dos “Inadministradores de Cultura” na Assembléia Legislativa (29/10/2008) $ATED: Viva paranóia! (08/10/2008) Instrução Normativa 171: Liquidando a LIC (18/09/2008) Uma Bienal para Porto Alegre (11/09/2008) A Verdadeira História do Grupo Visuart (04/09/2008) O centenário da morte de Machado de Assis (27/08/2008) Alfândega de Porto Alegre: dois séculos de história (22/08/2008) O espaço da arte na sociedade playbeck (22/08/2008) Os “Prefeitáveis” no território da covardia (31/07/2008) Quando o progresso incomoda a cultura (30/07/2008) A Ofélia dos pampas (17/07/2008) Carta de Alexandre Vargas à Governadora Yeda Crusius (18/06/2008) Um templo para o soturno (10/06/2008) Christo deu Godot na Fronteira do Pensamento (28/05/2008) Um marco para a história (24/04/2008) Uma festa que vai mudar a literatura gaúcha (07/04/2008) FestiPoa Literária: melhores momentos (01/04/2008) Na Festa da Uva, a capital nacional da cultura despreza grupos artÃsticos autênticos (13/02/2008) Coisas da Cidade (31/01/2008) Investimento público em Cultura cresce no Brasil e cai no RS (25/12/2007) Enquanto a mula empaca, vá emburricando (24/12/2007) Emoção na Noite do Livro (16/12/2007) S.O.S. (03/12/2007) A miséria intelectual continuará a guardar a nossa miséria material? (22/11/2007)
Os comentários são publicados no portal da forma como foram enviados em respeito
ao usuário, não responsabilizando-se o AG ou o autor pelo teor dos comentários
nem pela sua correção linguística.