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Receita de como não escrever
Marta Leiria

Naquela reluzente manhã de primavera, Fabíola foi despertada com os primeiros raios de sol adentrando generosamente em seu quarto pela fresta da veneziana. A luz veio brindá-la acompanhada pelo melodioso canto dos pássaros que habitavam as árvores do pátio, sinalizando um dia repleto de promessas. Abriu vagarosamente os olhos, ofuscados por tamanha claridade, bocejou e se espreguiçou sem pressa. Antes de descer da cama, lembrou-se de pisar com o pé direito no chão para garantir que não haveria qualquer contratempo na festa planejada com tanto esmero. Pegou o chambre de seda deixado displicentemente sobre a mesa de cabeceira na véspera, calçou os chinelos de saltos altos e plumas, e dirigiu-se ao banheiro.

Trago aqui as primeiras e mal traçadas linhas de “A festa”, exercício inaugural da Oficina de Subtexto ministrada pela escritora Cíntia Moscovich. A meta era escrever um texto recheado de clichês. Para nunca mais repetir o feito — ou ao menos tentar. Impressiona como tudo flui sem qualquer esforço, já, já o texto fica prontinho. O meu estava horrível, disse a professora, fiz bem como ela pediu! Sem querer ser chata com o pessoal das redes sociais, e já sendo, sempre me lembro de minhas cavalgadas em “O pai dos burros” — dicionário de lugares-comuns e frases feitas — ao me deparar com declarações virtuais, em especial as de amizade e amor (a outrem ou a si próprio): alma gêmea, sólida amizade. Cara metade? Essa é hors concours. Além de brega. É um tal de amor incondicional para cá, de muito amor envolvido para lá. Amor infinito. Novidade recente é a aclamada melhor versão de mim mesma — algumas ainda não dicionarizadas.

Já me disseram que eu era uma alma caridosa só por ter participado de corrida de rua pela adoção. Não me identifiquei com o clichê a mim atribuído, fiquei em dúvida se deveria agradecer. Obcecada por ser bem educada (rimou), me limitei a curtir o elogio. Embora Humberto Werneck confesse que o dicionário não se trata de um index prohibitorum, nada de polícia, adverte que devemos desconfiar de tudo que saia apelos dedos com demasiada facilidade; no entanto, ele também tem suas frases feitas prediletas.

Avisei o pessoal de casa que não esperem juras de amor em redes sociais, elogios sobre o quão amados, bonitos e inteligentes eles são (é verdade). O que eu quiser dizer vai ser olho no olho (dessa frase feita eu gosto). As minhas queridinhas, que achava até incomuns, mas desconfiei, são: agora é que são elas, digno de nota e de bom alvitre. Sim, todas estão no livro, estou tentando me livrar do trio. As mal traçadas linhas que usei neste texto também constam no rol de automatismos. Ah, antes que eu me esqueça: esta receita de como não escrever só é válida para escritores, não vou oferecer denúncia contra os outsiders da escrita criativa até porque já faz muito tempo que não atuo na área criminal, além de estar aposentada do Ministério Público.


04/09/2023

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  Marta Leiria

Marta Leiria é escritora e Procuradora de Justiça aposentada. Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS (1985). Ingressou na carreira do Ministério Público do RS no ano de 1988, aposentando-se em março 2019. Iniciou-se em 2012 na arte da crônica e do conto, participando de oficinas de escrita criativa e publicando artigos em Zero Hora e outros jornais. Lançou seu primeiro livro individual de crônicas e contos na 65ª Feira do Livro de Porto Alegre: A inveja nossa de cada dia e outras reflexões crônicas, Ed. Metamorfose, 2019. A obra foi finalista do Prêmio Minuano de Literatura 2020 na categoria Crônica e do Prêmio Apolinário Porto Alegre 2020, da Academia Rio-Grandense de Letras.

martalealpach@gmail.com


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