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Reflexão

Águas de maio
Emilly Garcia

Nasci e me criei perto das águas. Minha cidade natal, Marabá, está localizada no encontro entre os rios Tocantins e Itacaiúnas, no Pará. Todos os anos, durante o inverno amazônico, que não é frio, mas chove bastante, os rios sobem. Às vezes, mais. Às vezes, menos. Cresci ouvindo histórias sobre a grande enchente na década de 1980 e, em 1997, vivenciei outra grande. Nesse ano, chegamos a abrigar alguns parentes.

Lembro que a Defesa Civil de Marabá emitia alertas com bastante antecedência. A população podia agendar junto ao órgão a retirada de móveis e eletrodomésticos, e a prefeitura disponibilizava abrigos para quem precisasse sair de casa. Tudo era feito com calma, pois os rios lá do Norte não costumam subir rapidamente. Não havia caos e desespero. Meus primos e eu até brincávamos nas ruas alagadas, arriscando uma contaminação por leptospirose.

Minha relação com as águas sempre foi muito respeitosa e pacífica. Mas, em maio de 2024, isso mudou. Agora em outra morada, Porto Alegre-RS, vivi outra enchente. Essa, catastrófica. Por todos os lados e nas redes sociais, o que se via era um cenário de destruição, correria, tristeza, perdas irreparáveis. Amigos e conhecidos que ficaram sem referência de ter para onde voltar, perderam tudo. Gente e bicho sendo resgatados do jeito que dava. Abrigos superlotados, bairros e cidades inteiras devastados. As ruas de Porto Alegre viraram rios. Quem diria que eu sairia de lá do Norte para ver peixes e jacarés aparecerem em vias importantes da capital gaúcha.

As águas de maio foram, desculpem o trocadilho, um divisor de águas na vida de todo ser vivo que habitava o Rio Grande do Sul naquele fatídico mês de 2024. Nunca esquecerei a paleta de cores predominante, o marrom-lamacento do Guaíba que se fundia com o cinza do céu carregado de chuvas intermináveis. Parecia um cenário de filme distópico, no estilo "Caminhos da Memória" (2021). Nunca rezei tanto por dias ensolarados.

Enquanto a luz do sol não rompia as nuvens carregadas, outra luz nos dava algum alento. Era o empenho e a dedicação de voluntários incansáveis. O trabalho deles fez toda a diferença no pior momento da enchente de 2024.

Tragédia anunciada. Há culpados? Claro que sim. Em nível macro, a humanidade que insiste em negligenciar a vida ecossistêmica no único planeta habitável da Via Láctea. Em nível micro, os governos municipais e o estadual que ignoraram os estudos de cientistas e os alertas de ativistas ambientais.

Chegamos em junho, mas aquele mês de maio ainda não terminou. As águas começaram a baixar, é verdade. Cada centímetro a menos é motivo de alívio. No entanto, o que se vê nas ruas de Porto Alegre e região metropolitana é carro enguiçado, lama, lixo, pau, pedra, resto de toco. No rosto, o desgosto de quem tenta retornar para casa e percebe que nada restou.

Eu mesma precisei sair de casa duas vezes, mas não tive perdas materiais. Diante de tudo o que vi e ouvi em maio de 2024, minha relação com as águas continua sendo respeitosa, porém agora existe medo e apreensão. O barulho de chuva aflige e deixa em estado de alerta. "Meu Deus, vai acontecer de novo?".

As águas de maio deixaram marcas profundas nas paredes, paisagens e em nossos corações. Contudo, meu desejo é que não seja o fim do caminho, mas uma promessa de vida nos meses vindouros de reconstrução.


25/06/2024

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  Emilly Garcia

Emilly Garcia nasceu em Marabá-PA, é bacharel em Jornalismo pela Universidade da Amazônia-PA (2010), pós-graduanda em Filosofia pela Universidade Estácio de Sá e pós-graduada em Televisão e Convergência Digital pela UNISINOS-RS (2012). Participou de oficinas, saraus e de três coletâneas. Estudou Literatura e Teorias do Imaginário na PUC-RS (2022) e foi aluna do Curso Livre de Formação de Escritores (2020), da Editora Metamorfose.

garcia.emilly@gmail.com


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