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Resenha

Multum in parvo! O Aleph e o Google
Marcos Garcia Jansen

Nos últimos anos da década de 1970, li um artigo na revista de uma grande fábrica de cimento, a Matsulfur, sediada em Montes Claros, no Norte de Minas que me causou espécie.

Hoje, por uma incitação do meu professor Marcelo Spalding, ao tecer merecidos elogios ao argentino Jorge Luis Borges, friamente esquecido pelo Nobel de Literatura, lembrei deste artigo que fazia menção a um conto de sua lavra, o Aleph.

Este artigo fazia referência a algo que ainda não existia e que, futuramente, me lembraria o Google. Soava como uma predição. Guardei um exemplar da revista como testemunho ou comprovação do vaticínio. Na época algo assim soava a loucura, uma impossibilidade abissal. É arriscado dizer que um determinado fato ou produto não é possível, sem acrescentar o adverbio ainda ou hoje. O tempo acerta tudo, permite hoje o que era impossível ontem.

***

O Aleph, publicado no livro Ficções de 1949, conta que, na Rua Garay, em Buenos Aires numa vivenda de mais de quarenta anos, existia algo assombroso, denominado pelo morador da casa de Aleph. Considerei isso difícil de acreditar, mas pelo título do livro, não seria nada descabido.

Como admitir, naquela época, a existência de algo que pudesse mapear todo o Universo, fazer ligações entre entidades, medir seus tamanhos e importância, determinar relevâncias e compará-las? E tudo isto simultaneamente e sem sobreposição. Cristo sendo crucificado, Adão dormindo com Eva, Caim matando Abel, Cabral descobrindo o Brasil, Napoleão morando na ilha de Santa Helena, o assassinato de Kennedy, o nascimento de Confúcio e todos os fatos ocorridos até então.

Quem levou Borges nesta empreitada foi Carlos Argentino Daneri, por quem nutria uma antipatia que era neutralizada por ser primo-irmão de Beatriz Viterbo, grande amor de Borges e já falecida.

Para convencer o escritor a descer ao Porão escuro e tenebroso, apresentou argumentos que a mente aguçada de Borges não poderia refutar. Daneri acenou com a possibilidade de Borges voltar a falar com seu grande amor, se tivesse contato com o Aleph.

"- Já sabes, o decúbito dorsal é indispensável. Também o são a escuridão, a imobilidade, certa acomodação ocular." Disse ainda:

- Tu te deitas no piso de tijolos e fixas o olhar no décimo nono degrau da pertinente escada. Saio, baixo o alçapão e ficas sozinho. Algum roedor te mete medo — não tem importância! Em poucos minutos vês o Aleph. O microcosmo de alquimistas e cabalistas, nosso concreto amigo proverbial, o multum in parvo!"

"Desci com rapidez, farto de suas palavras insubstanciais. O porão, pouca coisa mais largo que a escada, tinha muito de poço. Carlos pegou uma sacola, dobrou-a e acomodou-a num lugar preciso.

— O travesseiro é humildoso — explicou —, mas, se o levanto um centímetro, não verás nada e ficas confundido e envergonhado. Refestela esse corpanzil no chão e conta dezenove degraus.

Cumpri suas ridículas instruções; por fim, saiu. Fechou cautelosamente o alçapão; senti um confuso mal-estar, que tentei atribuir à rigidez. Fechei os olhos, abri-os.

Então vi o Aleph."

"Chego, agora, ao inefável centro de meu relato; começa aqui meu desespero de escritor. Toda linguagem é um alfabeto de símbolos cujo exercício pressupõe um passado que os interlocutores compartem; como transmitir aos outros o infinito Aleph, que minha temerosa memória mal e mal abarca? Nesse instante gigantesco, vi milhões de atos prazerosos ou atrozes; nenhum me assombrou tanto como o fato de que todos ocupassem o mesmo ponto, sem superposição e sem transparência. O que viram meus olhos foi simultâneo; o que transcreverei, sucessivo, pois a linguagem o é. Algo, entretanto, registrarei.

Na parte inferior do degrau, à direita, vi uma pequena esfera furta-cor, de quase intolerável fulgor. A princípio, julguei-a giratória; depois, compreendi que esse movimento era uma ilusão produzida pelos vertiginosos espetáculos que encerrava. O diâmetro do Aleph seria de dois ou três centímetros, mas o espaço cósmico estava aí, sem diminuição de tamanho. Cada coisa (o cristal do espelho, digamos) era infinitas coisas, porque eu a via claramente de todos os pontos do universo.

O artigo da revista, depois de enumerar as elucubrações de Borges sobre o Aleph, caminha para o final prevendo que um dia o poder da nascente internet, mais a capacidade da informática, pudesse criar algo que conseguisse vasculhar todos os arquivos digitais do mundo e procurar algo de nosso interesse. Cruzar informações, estabelecer comparações, analisar tendências buscar referências e criar algo de novo, de desconhecido, de plausível.

Nesta altura seria impossível, mas o somatório de conhecimentos que se acumulavam nas mentes e laboratórios do planeta poderiam, em determinada altura, das um estalido e criar um Aleph.

Criou o Google em 1998.


15/10/2024

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