Há três cenários ou temas principais na extensa obra do cartunista Santiago. O caprichado e recém saído livro “Caminhos do Santiago” (Editora Gastal & Gastal, 211 págs), que termina por reunir a maior parte dos trabalhos significativos do artista Neltair Rebés Abreu – que assina “Santiago” em referência à sua cidade natal, no interior do RS – facilita esta percepção. A saber: a vida campeira, com suas memórias afetivas da infância e referências visuais do meio rural gauchesco; o ambientalismo, no qual se engajou profundamente desde o início da carreira, nos anos 70; e, por fim, os grande painéis ou murais da urbanidade, da heterogeneidade da concentração humana, com sua infindável sucessão de rostos e singularidades.
Aos 61 anos, Santiago foi criado profissionalmente tendo como pano de fundo o cinza do regime militar (1964-1985). E fez parte da geração de cartunistas, jornalistas, compositores, pintores, cineastas, que, em todo o Brasil, foi obrigada a desenvolver seu trabalho naqueles anos de censura, de arbítrio e violência. Sua produção, ao longo do tempo, está repleta de charges de teor político, em que militares cheios de medalhas, espada à cinta, pompa e arrogância – com cara de generais de opereta – figuram como vilões, vilões que, ao mesmo tempo, são bufões...
O mesmo se dá com carrascos de capuz negro na cabeça e chicote nas mãos, num clima medieval, mas que tinha muito a ver com a duríssima realidade da tortura e da morte, praticadas nos porões dos órgãos de repressão civil e militar.
A veia política
A veia política sempre pulsou, até mesmo pelo trabalho de colaborador de sindicatos e entidades de trabalhadores, assim como para campanhas cívicas e eleitorais. Aliás, vale registrar que o espaço dos jornais sindicais terminou sendo, em muitos casos, a saída profissional para a sobrevivência de grande parte dos chargistas. Depois de enfrentarem a censura militar no tempo da ditadura (que agia dentro mesmo das redações da grande imprensa), os cartunistas mais questionadores foram aos poucos expelidos desta mesma grande imprensa, já em plena democracia. Afinal, os grandes interesses empresariais e econômicos é que passaram a dar as cartas marcadas e, como até hoje, a não admitir qualquer crítica – mesmo em forma de humor – à suas ações e ao seu poderio.
Com algumas exceções, sobraram naturalmente nas grandes redações os chargistas que mantiveram-se preferentemente focados na crítica cotidiana aos políticos. A ganância, os golpes e as negociatas dos conglomerados empresariais (nos quais está inserida a grande mídia), do sistema financeiro nacional e internacional, dos setores mais conservadores da elite brasileira (por baixo do pano, mas à toda vela), não devem ser abordados. Também ficaram os desenhistas que preferiram dedicar-se à crítica comportamental, ao esporte e à crônica de costumes. Os cartunistas mais jovens, pelo jeito, já entram sabendo: só vale pegar pesado com os políticos.
O trabalho desenvolvido pelos cartunistas resistentes (como Edgar Vasques, Eugênio “Corvo” Neves, Schroeder, Ronaldo Wessterman e outros, além de Neltair), neste aspecto, foi muito importante e ajuda a contar a história nebulosa desse período no Brasil e no RS.
Mas, como assinalei no alto do texto, creio que é naqueles três temas, em que Santiago pode dar livre vazão à sua vontade, que ele atinge os melhores momentos da carreira.
O gaudério
A começar pelo seu linguajar impregnado de expressões gauchescas e fronteiriças, Santiago remete o ouvinte – melhor dizendo, o leitor de seus cartuns e historias em quadrinhos – ao mundo rural. Desafiado a criar uma tira para ilustrar um jornal voltado aos agricultores, nos anos 70, Santiago rebuscou a memória. Pegou detalhes de vários homens do campo, que conheceu na infância e adolescência nas décadas de 50 e 60, e gerou seu principal personagem: o gaudério Macanudo Taurino. Inspirado livremente, segundo ele mesmo, em Inodoro Pereira, um “gaucho” do pampa argentino, desenhado por Fontanarossa.
Macanudo pouco a pouco foi ganhando mais definição no traço e na personalidade, sempre acompanhado do seu fiel guaipeca. Meio ingênuo, meio espantado e atrapalhado com as novidades da cidade grande, o que já rende muitas situações humorísticas, ele também surpreende por tiradas filosóficas profundas, sem ser pedante – é personagem de grande empatia.
Suas histórias são também um pretexto para Santiago exercitar seus grandes quadros sobre a vida rural de até 30 ou 40 anos atrás. Como os bolichos de beira de campo, com seus borrachos bebendo, seus jogadores de osso, suas carreiras de cancha reta. Ou a estação ferroviária do interior, com as famílias que vão embarcar ou os parentes que voltam, com pacotes caindo nos trilhos ou gente correndo pra não perder o trem. Ou os bailões de campanha. Tendo como cenário e figurantes os rústicos peões de estância, ele construiu várias versões humorísticas da Última Ceia, de Da Vinci.
O ambientalista
Outra frente em que está constantemente empenhado é na defesa do meio ambiente. Muitos de seus cartuns sobre este tema (entre outros) já receberam prêmios internacionais, inclusive de um dos principais eventos do gênero no mundo, realizado pelo jornal japonês Yomiuri Shimbun. Vale recordar as inúmeras paisagens, muitas vezes com tons líricos e fantásticos, da imensidão do pampa, cortada por uma pequena casa de sítio, uma ou duas árvores próximas, um poço e o catavento de sua infância.
Um cartum clássico de Santiago, sobre a relação homem e natureza, é aquele em que um grupo de visitantes no alto de um monte, ouve, encantado, o retorno perfeito de suas vozes, no “Vale do Eco”. Alguns metros abaixo, onde não pode ser vista, uma equipe de técnicos do “Serviço Nacional de Turismo” opera todo um equipamento de som que garante a perfeição do tal eco natural...
O panorâmico
O terceiro vértice do trabalho de Santiago são as panorâmicas, geralmente em cenários urbanos. Eventos e locais determinados de Porto Alegre, como a Feira do Livro, ou o Mercado Público e o Largo Glênio Peres, acolhem a multidão de homens e mulheres que por ali transitam. Mas através da caneta seletiva do cartunista, grande parte das dezenas ou centenas de figuras mostradas são personalidades conhecidas (da cidade, do mundo ou apenas da História), ou são personagens dos próprios quadrinhos e do cinema, como o seu Macanudo Taurino, o Rango, de Edgar Vasques, o Saci, de Ziraldo, o ET, de Spielberg, o Alemão Blau, de Bier, e tantos mais. Quando não coloca em cena, num canto da folha, figuras com o rosto de alguns dos desenhistas, poetas ou políticos que admira – incluindo ele mesmo.
E o povo está todo lá, nestes murais: engraxates, mulatas sambando, executivos apressados com suas pastas, meninas segurando balões, carroceiros, policiais fazendo a ronda, enquanto um larápio age exatamente às costas deles... Os painéis, que também mostram os prédios clássicos e as ruas centrais de Porto Alegre, recheados de gente, são uma espécie de releitura de “Onde está Wally?”, do cartunista britânico Martin Handford, só que não há apenas um personagem central para localizar e identificar, mas dezenas. O mesmo estilo dos painéis urbanos superpovoados, ele repete em bailões gauchescos no interior, cartazes para eventos como o Fórum Social Mundial e muito mais.
Humor pelo humor
Sujeito naturalmente engraçado, Santiago não deixa de fazer também o chamado “humor pelo humor” - piadas de situação, ingênuas ou singelas, como o cartum onde a família de Marco Polo, na Veneza medieval, à hora do almoço, vê um bilhete preso na porta pelo dono da casa: “Fui à China buscar macarrão. Marco Polo”.
Cultor da chamada “linha clara” dos quadrinhos, cujo grande mestre foi o belga Hergé, de “Tin Tin”, o cartunista gaúcho gosta de enfiar em seus desenhos homenagens e citações a outros artistas que o marcaram, como o catalão Gaudi, o alemão Escher, o americano Edwar Hooper, Da Vinci, Picasso...
É interessante observar: eleger um típico gaúcho do interior como porta-voz de sua visão de mundo e suas inquietações, foi uma opção que muitos escritores riograndenses já fizeram, em diferentes graus de sucesso e talento. Neltair Rebés Abreu, no entanto, até pela natureza de sua arte, vai no sentido oposto: onde há arroubos de coragem, ele coloca ironia na boca do Macanudo Taurino; onde há a postura machista, ele insere a relativização; onde há o discurso ufanista e grandiloquente sobre a superioridade do gaúcho, Santiago opta pela reflexão.
Mas que ninguém se preocupe: o riso é sempre garantido. Como comprovam estes 35 anos de carreira, engajamento e piadas que fazem rir no mundo inteiro.
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