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Artes Cênicas

Tudo resolvido?
Douglas Carvalho

No último dia 05 de fevereiro, por volta de 18h, adentramos o Teatro de Arena para realizar a terceira e última apresentação de CALE-SE: As Músicas Censuradas Pela Ditadura Militar no 13º Porto Verão Alegre. Era também a 13ª apresentação desse espetáculo musical, em pouco mais de um ano de estrada. Para os supersticiosos, poderia ter sido a pior ou a melhor apresentação da nossa carreira. E foi. Ao mesmo tempo.

Já eram quase 19h quando os músicos chegaram. Foi aí que perceberam que algo faltava no camarim: uma guitarra desaparecera. Na tentativa de encontrá-la, o vigilante do local nos informou que um rapaz chegou ao teatro por volta de 15h daquele mesmo dia, dizendo que havia feito uma participação especial em nosso espetáculo no dia anterior e tinha ido buscar o instrumento que havia deixado. O meliante estava acompanhado por uma mulher, segundo o vigilante, e havia citado meu nome como produtor do espetáculo. Sem qualquer identificação ou suspeita, o vigilante abriu a porta do camarim, que estava chaveada, para que o rapaz pegasse a guitarra de um dos nossos músicos e a levasse, saindo do teatro com ela nas costas, levando capa, correria e afinador junto.

Ao ouvir essa história, logicamente a indignação tomou conta de todos da equipe. Como pode um vigilante ter sido tão ingênuo a esse ponto? Eu, como produtor do espetáculo, não havia recebido qualquer ligação naquele dia informando o caso. Detalhe: eu já havia trabalhado como estagiário no Teatro de Arena, por dois anos, e essa situação nunca havia ocorrido. Obviamente, era comum que músicos deixassem seus instrumentos e viessem pegá-los depois. Mas sempre havia uma confirmação, uma ligação para quem conhecíamos, de forma a isentar o teatro da culpa por um possível furto ou roubo. O que não houve desta vez. Negligência? Ingenuidade? Acredito que não vem ao caso tentar descobrir o que se passou na cabeça do vigilante. Talvez nem ele mesmo o saiba. Mas há a curiosidade, ao menos de minha parte. Por que ele não desconfiou do rapaz? Será que ele não possuía uma aparência suspeita? Provavelmente, não. Mas nunca se julga um livro pela capa. Seja quem quer que tenha sido, o furto foi muito bem estudado e executado. Acreditamos inclusive que a pessoa tenha até assistido ao show nos dias anteriores, tamanho era o seu conhecimento sobre o evento e sobre o funcionamento do local. De qualquer forma, a funcionária do teatro, que estava de plantão naquele dia, nos prestou gentilmente toda a assessoria necessária, efetuando imediatamente o boletim de ocorrências junto à Polícia Civil, e relatando o fato à Brigada Militar, à direção do teatro e à empresa de vigilância, que presta serviços ao teatro. Mas, e o show?

O músico lesado estava sentado, cabisbaixo, no camarim. Sua esposa, que o havia acompanhado em todas as apresentações, estava extremamente nervosa, por um breve momento, chorou consolada pelo diretor do espetáculo. Os outros músicos tentavam ora consolar o músico, ora tentar entender o que havia acontecido. Eu e a outra intérprete do show estávamos tentando nos concentrar, apesar de tudo, pois tínhamos um show para fazer dali a alguns minutos. Enquanto isso, nossos convidados para participação especial, ensaiavam um pouquinho no palco, e ajeitavam a câmera para gravar, gentilmente, o show daquela noite. O público foi chegando. O nervosismo foi aumentando, parecia multiplicado por dez naqueles instantes antes da entrada das pessoas. Última checagem pelo diretor se estava tudo em seu devido lugar. Uma última oração antes de começar. A funcionária do teatro faz a abertura dos trabalhos informando a todos que desliguem seus celulares e deseja a todos um bom espetáculo. Senti que ela também o desejava a nós, ou, pelo menos, tomei aquele desejo para mim também, pois nunca havia me apresentado sob tais condições emocionais. Só tinha certeza de uma coisa: ou seria a melhor ou a pior apresentação de nossas carreiras. Não havia lugar para meio-termo.

E começa o espetáculo! O diretor solta a gravação de Cálice, feita em 1973, na qual os microfones de Chico Buarque e Gilberto Gil, compositores da canção, foram desligados por causa da presença de um censor da Polícia Federal na platéia. Os músicos entram no palco do Teatro de Arena e tomam suas posições. Aplausos. Quase ao final do áudio que estava tocando, o diretor faz o sinal para que os intérpretes entrem. Eu e minha colega pisamos no palco. Casa cheia. Mais aplausos. Uma luz ilumina meu rosto, e eu tento absorver sua energia. Adrenalina à mil. Só penso em uma coisa: vou bloquear o que ocorreu e dar tudo de mim, pois esse público merece! Na primeira música, a voz sai embargada, emocionada. Mas dá tudo certo, afinado e seguro. O apoio da minha colega na primeira música fez-me sentir mais confiante.

Agora, vem a hora H: meu primeiro solo no show. Uma música dificílima, e que havia mudado de tom para essa temporada, pois estava muito grave para a minha voz. Pouco antes de cantá-la, percebo a ironia no título da canção: Apesar de Você. E essa energia de “apesar de tudo, vamos fazer um ótimo trabalho” percorreu todos os 90 minutos do espetáculo. Público canta junto comigo o refrão. Fico surpreso. Isso nunca havia acontecido, pois geralmente a platéia começa a cantar lá pelo meio do espetáculo, quando se sente mais à vontade. E o show acontece da melhor maneira possível. Aplausos efusivos, público cantando junto sempre, batendo palmas, rindo. Houve até uma improvisação de percussão com um de nossos convidados especiais e o percussionista do nosso show, antes do bis. Na saideira do show, a platéia se levanta, dança, pula, brinca e aplaude de pé, encerrando nossa 13ª e melhor apresentação de toda a carreira do espetáculo. Naquele dia, descobri o verdadeiro significado da expressão “lavar a alma”.

Bem, de volta ao problema, tudo o que se poderia fazer naquele domingo à noite foi feito. No outro dia, o músico lesado registrou presencialmente a queixa e pediu abertura de inquérito. A princípio, todas estavam desesperançosos. Eu ainda tinha a fé de que tudo ia se resolver da melhor maneira possível. Depois de muita pressão e insistência junto ao setor jurídico da Secretaria de Estado da Cultura, ao qual o Teatro de Arena é vinculado, e junto à empresa de vigilância que presta serviços ao Estado, inclusive com reportagens feitas em mídia impressa e televisiva, o caso finalmente teve uma solução há alguns dias. Resolveram indenizar o nosso músico pagando o valor de uma nova guitarra para ele, graças ao esforço de toda a equipe da Gato&Sapato, que assumiu a lesão e esteve sempre ao lado de nosso músico, e ao empenho da direção do Teatro de Arena em resolver o caso.

Tudo resolvido? Bem, foi a primeira temporada de nosso músico no show. Foi uma situação delicada, mas ele ficou agradecido pelo nosso esforço e entende que poderia ter acontecido em qualquer lugar. Não sabemos que destino o vigilante descuidado vai ter na sua empresa. A guitarra original, ainda não sabemos que fim levou. E esse não foi o único caso de falha na segurança em teatros nesse mesmo período. Naquela mesma semana, nossos colegas de outro espetáculo tiveram alguns pertences furtados durante uma apresentação no Teatro de Câmara Túlio Piva. Portanto, ainda restam algumas perguntas. Nem os artistas estão mais seguros ao executarem seus trabalhos? O público, que já é pouco, ficará menos seguro ao ir assistir às nossas peças? Ainda não houve violência física em nenhum dos casos ocorridos, mas e se houver daqui a algum tempo? É preciso que o governo se preocupe com isso. Afinal, como falei em outra coluna, a cultura deve ser prioridade política. É através dela que as pessoas alimentam a alma. Como a platéia que nos prestigiou naquele dia, saindo de lá em catarse absoluta ao assistir um espetáculo de qualidade que resgata a história da música brasileira. Assim como nós, artistas, saímos daquele teatro com a sensação de dever cumprido para aquelas pessoas que saíram de suas casas para nos ver. Estamos sempre de olho.


13/03/2012

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Comentários:

Grande Douglas, Já havia assistido o CALE-SE um ano antes , gostei tanto que revi agora em fevereiro .Fui no dia em que a convidada especial era a prof. ASLAN ( não sei se é assim seu nome ) mas me chamou a atenção uma certa tensão no ar.Depois de cantar Aldir e João Bosco no Navegante Negro que homenageia o gaúcho João Candido percebi que tua colega chorava mesmo , parecia sofrida , machucada , revoltada .Pode ser coincidência ou não ter nada a ver com a história que contastes mas o importante é que voces dois e os músicos foram absolutamente despojados , bravos , autenticos e audaciosos em lembrar um tempo ruim que muitos fazem questão de esquecer , como se não tivesse acontecido.Bom que voces lembraram , apesar do furto. Valeu muito o CALE-SE que deve voltar todo ano à cena . João Carlos Biernat
JOÃO CARLOS BIERNAT, porto alegre 23/03/2012 - 00:49

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  Douglas Carvalho

Douglas Carvalho é ator, produtor cultural e professor de interpretação para Teatro, TV e Cinema. Bacharel em Teatro pela UFRGS, atualmente cursa também a Licenciatura em Teatro pela mesma universidade. Participou do seriado VidAnormal, da TVCom e atuou em três curtas-metragem como protagonista: Inversus (2008), Não Olhe (2010) e Inferno Azul (2010). No teatro, atuou em 11 espetáculos, entre os quais destaca Salomé - o amor e sua sombra (2007/2008), O Balcão (2007/2008), Dois Perdidos Numa Noite Suja (2008/2009) e A Aurora da Minha Vida (2009/2010), estes dois últimos com a Cia. de Teatro Gato&Sapato da qual faz parte atualmente, desenvolvendo seu trabalho como ator e produtor.

carvalho.douglas@gmail.com
douglasdad.blogspot.com
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