Lembro-me ainda do dia em que jurei a bandeira. Já faz bastante tempo, mas uma das figuras que, assim como eu, “escapou” do serviço militar ficou gravada na minha memória. Isso aconteceu provavelmente pelo fato do cara estar usando uma blusa branca com mangas cheias de franjas, tipo aquelas usadas pelos caubóis dos filmes de antigamente. A aparência estranha do rapaz completava-se nas feições do rosto. Os ossos do maxilar eram saltados e a sua dentadura de alguma forma teimava em escapar para fora da boca, como se fossem presas de um vampiro. Realmente, não era uma criatura bonita de se olhar.
Os anos foram passando e eu, vez por outra, avistava o sujeito pelas ruas da cidade, sempre do mesmo jeito, carregando pés-de-moleque em uma grande cesta de vime para vender. Sentia pena pela sua pobreza, pela sua triste condição de andarilho e falta de sorte melhor na vida. É bem verdade que eu, nas duas décadas que se passaram desde o momento em que solenemente (e um pouco apavorados) declaramos nosso compromisso de lutar pela pátria no caso de alguma emergência, não fiz nada de extraordinário, além de concluir uma faculdade e trabalhar em um ramo bem diferente daquele para o qual estudei durante quatro anos, sem obter fortuna nem um ótimo salário. Entretanto, a visão do vendedor de cocadas sempre foi algo chocante, uma lembrança viva e incômoda das desigualdades sociais que existem no mundo, da falta de oportunidades que se abate sobre uma porção de gente. Estranhos desígnios do destino... Por que ele teve que enfrentar essa infausta realidade enquanto eu, nascido em berço de ouro, tive uma juventude confortável?
Um dia, tomei coragem para abordar o meu ex-futuro-colega de farda. Seu ponto de descanso, estrategicamente escolhido entre as caminhadas com a pesada cesta embaixo do braço, é a pequena praça que fica na frente das garagens da prefeitura, ali na rua Visconde de Pelotas, em Caxias do Sul. Com seus bancos de cimento e a sombra farta das árvores, o local decerto rende alguma venda ao rapaz, tendo em vista o grande número de funcionários públicos que por ali passa. Como a praça faz parte do meu caminho para o trabalho, não tive problemas em alcançar meu intuito. O vendedor de cocadas mal conseguia falar, quando eu lhe perguntei o preço do pé-de-moleque levantou a ponta do indicador como quem diz “um real”. Talvez o rapaz estivesse embriagado, ou tivesse uma debilidade mental qualquer (não vamos esquecer que ele foi dispensado do quartel).
Enquanto me afastava dali, tendo adquirido um pé-de-moleque, comecei a pensar sobre aquela situação. De uma certa forma, mais uma vez eu me parecia com o cara. Senão, vejamos. Além do fato de termos jurado a bandeira juntos, dependemos da boa vontade de alguma alma generosa para vender nossas guloseimas. Os doces que eu faço são os livros, digamos assim. Como escritor, encontro uma avalanche de dificuldades para progredir. São os livreiros que te ignoram, editoras que não te dão resposta sobre originais enviados para análise, a mídia que se fecha. As próprias escolas, onde deveria reinar o intuito de ensinar, negam oportunidades para o escritor local mostrar o seu trabalho. Afinal, um dos anseios do escritor é cativar os mais jovens, cumprindo seu papel de cidadão e ajudando na criação de uma sociedade melhor. Se houvesse estímulo e caminhos para incentivar a leitura e, consequentemente, a educação, talvez não houvesse a pobreza que produz vendedores de cocada e tantos outros sub-empregos.
A verdade é que são muitas portas fechadas para quem começa (embora no meu caso já com três títulos na praça) e poucas portas abertas. A torre de marfim do bom-gosto cultural e as engrenagens do “show business” literário vão te colocar numa espécie de limbo, do lado de fora da festa, olhando para dentro sem poder entrar. E assim vamos vivendo, ganhando merrecas de amigos, parentes e conhecidos que solidários compram nossos livros. É claro que a estrada é árdua e longa, o ramo da literatura é como qualquer outro, o trabalho tenaz vale mais do que o talento puro e simples.
O artista que se preza, contudo, deve perseverar com seus projetos, valorizando sua própria identidade criativa, sem desistir nunca. Nem que seja vendendo as obras no afã das ruas, dentro de uma mochila, ao modo de um doceiro mambembe, com sua cesta cheia de cocadas e ilusões.
Cara Ivete.
Obrigado pelo comentário.
Vamos em frente, pena que esse nobre ofÃcio seja tão ingrato à s vezes.
Abraços! Lúcio H Saretta, Caxias do Sul-RS13/09/2012 - 15:54
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