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Entrevista

"O gaúcho não perdoa os que saem do Rio Grande"
Luíz Horácio


Tarde chuvosa de uma quinta-feira de um dezembro interminável, como costumam ser todos os dezembros, no Rio de Janeiro. A casa olha o mar e é olhada pelo Cristo Redentor, a “Casa do Vento” a casa do poeta Nejar e de Elza, musa e guardiã, da vida, dos sonhos e das inquietações desse grande criador.

Da janela do escritório onde conversamos, o mar é a trilha sonora composta e executada pelas aves marinhas aperfeiçoam o momento. Do que mais o poeta precisaria? Do que mais, além da natureza e da sua consciência? Do que mais, além do equilíbrio exato entre amor e razão?

Estávamos lá, o poeta e este aprendiz, mais tarde fomos ao encontro de Elza, ou melhor, do carinho elegante de Elza. A intimidade do Nejar, o café com o Nejar, permanente poeta, incansável sentinela do tempo. Elza foi cuidar de questões práticas, a casa é enorme e esse casal a torna aconchegante.

Novamente a sós com o poeta, novamente em frente a janela por onde mar e aves nos espiam, me veio a repetida sensação de que sempre que estou com ele também estou com mais alguém que não se permite ser visto. Coisa de poeta amigo de Deus.

Conversamos sobre literatura, justiça, honestidade e expectativas.

Abaixo a entrevista com o nosso maior poeta vivo:

Luíz Horácio - Começamos pelos seus romances. Percebo a presença do mágico, do fantástico, podemos dizer, do realismo mágico em sua obra. Em A engenhosa Letícia do Pontal é fator preponderante, é o brilho do livro.

Carlos Nejar - Mas eu não busco isso, o mundo que é mágico, o universo que é mágico, o realismo mágico não foi invenção de ninguém, foi simplesmente a contemplação do mundo em torno. O Graciliano Ramos disse que a realidade é que é inverossímil. Ele chega ao ponto de afirmar que nada é mais inverossímil que a realidade. Então, ele não foi fantástico, foi um realista, mas eu não podia deixar a minha imaginação ficar coxa, ela tinha que andar. Tampouco meu pensamento deixaria de pensar, porque eu acho inclusive que a criação ficcional contemporânea, com exceções, não sabe pensar.

Parece que a literatura atual, principalmente a feita pelos novos nomes, está carregada de um excesso de realidade, ao mesmo tempo que mostra e defende um desapego às origens. Se pode falar da Mongólia, do 11 de setembro americano, porque falar do próprio rincão? Nesse sentido a imaginação é derrotada e a produção beira o boletim de ocorrência. O que lhe parece isso, é uma tendência da prosa contemporânea?

A literatura dos mais jovens, com exceções, está muito presa ao patológico, está muito presa ao que chama atenção, está solta totalmente das raízes, da terra e longe da terra ninguém floresce. Nós só florescemos quando somos plantados na terra. A gente pode até voar que nem um pássaro, mas a gente sempre tem que ter alguma asa, alguma parte do corpo na terra, porque a terra sempre vai-nos acompanhando. Eu aqui neste lugar, aqui no Rio de Janeiro, na Urca, eu sou um pampiano, e eu tenho a terra do pampa comigo. Não tenho nenhuma saudade do pampa, porque o pampa que eu trago comigo é muito mais vivo até do que aquele que está lá. Porque é o pampa que consegui configurar com a minha imaginação, com as minhas palavras, com os meus sonhos. E também é mais durável. Quer ver? Outro dia cheguei lá e já não conhecia mais ninguém, fiquei quase como uma espécie mitológica, um homem tão antigo que ninguém mais me conhecia. Andei pelas ruas de Porto Alegre e já não sabia de mais nada, o que via era uma rua com nome de um amigo meu, a estátua com nome de outro amigo, a casa com nome, por exemplo, de Mario Quintana, que foi meu amigo, o busto do reitor que era meu amigo. Eu sou um sobrevivente e o Rio Grande é o Rio Grande que trago comigo, esse não morre, esse continua na minha palavra. Não me interessa se sou amado ou desamado, a esse pampa eu tenho amor, aos meus viventes tenho amor, porque eles também me amam.

Quando me referi a terra, não quis me ater apenas ao Rio Grande, mas a proximidade que seus personagens têm com a terra, o homem ligado a terra. Você nunca expulsou o homem da terra para colocá-lo num cenário idealizado, ascéptico, falso. E você faz isso, expõe a relação do homem com a terra desprovido de qualquer panfletarismo ou libelo socialista ou marxista, porém mantém o caráter social que no meu entender é um momento alto em sua obra. Como você consegue fazer isso?

Faço isso porque falo da terra que eu vivo, é a terra que está em mim, está na minha palavra, nos meus personagens, eu não conheço outra terra. Inclusive no Espírito Santo, onde morei, inventei lugares míticos nos meus romances, por exemplo: Assombro...Assombro é o pampa, é o Riopampa. Há outros nomes que também criei, Lajedo dos Pardais, por exemplo, ou um outro lugar chamado Portal de Orvalho que aparece em A engenhosa Letícia do Pontal e também em O Poço dos Milagres. Isso é uma junção do Rio Grande com o Espírito Santo. Mas tem sempre o Rio Grande. Os meus personagens têm uma marca de existência do gaúcho, do temperamento gaúcho. O gaúcho não é um homem muito levado ao humor, embora tenha humor. Eu tenho feito um esforço na minha criação para dar-lhe um certo senso de humor porque o riograndense é evidentemente um ser apaixonado e dramático e tento equilibrar e sobretudo em outro lado, o lado de pensar. Eu não concebo uma criação, tanto na poesia como na ficção e como na História da Literatura, sem pensar e aí o ponto que julgo muito deficiente. Os nossos escritores, em regra, não pensam, fabulam, às vezes extraordinariamente. Mas não pensam.

Importante ressaltar um aspecto da sua obra que eu gostaria que você comentasse que é o fato de seus personagens estarem em constante movimento, movimento este que não se restringe ao romance em foram criados, mas que extrapola os limites do livro, eles transitam de livro para livro. A sua ficção é como uma história a contar uma história muito maior que a dos próprios personagens.

Eles são nômades, meus personagens estão sempre em romaria, eles vão em romaria de livro a livro, eles vão em romaria no livro, porque eles são muito a minha visão de passageiro, de alguém que está de passagem e isso é uma idéia medieval, nós somos peregrinos no mundo. Mas é também uma idéia pampiana porque o homem do pampa é um homem solitário e solidário. Solitário porque aprendeu a ver o horizonte. O horizonte o compreende e ele compreende o horizonte, e é solidário porque na medida que ele é amigo ele é fiel, é um homem guerreiro, e o homem guerreiro nunca saiu da minha vida. Daí o meu lado épico, porque o gaúcho é naturalmente um ser épico, épico não no sentido da épica tradicional, que é ridícula, hoje não tem mais validade porque fala do mundo acabado e a minha épica fala do mundo que está se fazendo constantemente.

Sua épica dispensa os heróis.

Sim, porque o meu herói não é Ulisses, embora ele esteja, não são os heróis de Homero, não são os heróis de Virgilio, é o homem cotidiano, é o homem sem nome, que eu dou nome, são Jesualdo Montes, Miguel Pampa, que eu dou voz, são os esquecidos, e se eu não der voz a eles, eles nunca terão voz, nunca terão rosto.

Embora toda essa característica social de sua obra, a preocupação com o homem do povo, muitos, posso dizer a maioria, o tem na conta de um homem ligado ao sistema, comprometido com o conservadorismo, um homem de direita no que isso possa ter de mais pejorativo. Alheio às causas sociais, um homem do poder. Por que tamanha discrepância? Você tem consciência disso?

Isso aí veio de uma grande conspiração de inveja, porque eles sabem da minha grandeza e é muito difícil suportar a grandeza alheia que é levada modesta, humildemente por uma pessoa que não se mostra pretensiosa, que não faz pose quando todos fazem pose, que é acadêmico por uma situação da vida, mas que nunca deixou a academia entrar na sua vida. A minha História da Literatura é um livro anti-acadêmico por natureza, os meus romances são anti-acadêmicos, a minha poesia é anti-acadêmica. Talvez por isso é que haja uma grande incompreensão da minha obra, porque fui um dos poetas brasileiros, dos raros, que se levantaram no tempo da ditadura com livros como Ave do mundo, Canga, O poço do calabouço. No tempo do sucessor de Salazar saiu a primeira edição de O poço do calabouço em Portugal, esgotou num mês, porque eu falava de liberdade e em Portugal a liberdade estava apagada, um livro que no Brasil tem várias edições porque muitos se encontraram dentro dele. Eu disse coisas que muitos quiseram que dissesse, mas não fui ao exílio, não fugi, eu fiquei aqui, testemunhei aqui, não me revesti de nenhum partido político, me revesti da condição humana.

No meu entender sua obra ainda não teve o reconhecimento merecido, isso tem alguma relação com sua saída do Rio Grande do Sul?

Por um lado sim, o gaúcho é muito bairrista e não perdoa os que saem do Rio Grande, embora o governador tenha me dado uma medalha como Embaixador do RS, mas eles não gostam das pessoas que deixam o Rio Grande, como se o Rio Grande não estivesse comigo. Está mais comigo até do que com eles. O Rio Grande que está comigo, está tão comigo como está com meu filho.

Parece que para o gaúcho, gaúcho é aquele que está no Rio Grande.

Eu quando estava lá, existia uma grande figura que era o Mario Quintana, meu amigo, que tinha uma visão completamente oposta a minha. Havia então duas correntes, uma corrente de uma poesia mais social, que é a minha, e uma outra corrente, de uma poesia mais simbolista. Então houve uma divisão sem que eu quisesse, sem que Quintana quisesse, porque Quintana era um amigo meu particular, tem poema dedicado a mim, inclusive. Nós poetas não temos essas miudezas, mas no momento em que saí do Rio Grande, consegui e foi a única forma para conseguir entrar na ABL, e antes me candidatar fui conversar com Quintana e ele disse: “Nejar, eu não vou mais me candidatar.” Se eu ficasse no Rio Grande jamais estaria na Academia porque eles teriam me esmagado. A minha saída deu a alguns, sobretudo os despeitados da província, uma raiva muito grande porque saí fora dos domínios deles. A pessoa sobrevive, não pela pose, não pelas fotos nos jornais, mas pela obra, pela palavra. Ninguém como poeta pintou o Rio Grande como eu, e mesmo na ficção, e respeito muito a ficção do Moacyr Scliar, mas ele fala muito dos imigrantes judeus, eu falo de um Rio Grande de sempre.

Você retrata muito bem o Rio Grande, no entanto isso não é levado em consideração. Hoje o retrato da literatura do RS é a autora da Casa das sete mulheres. Ela se tornou uma unanimidade com um livro cheio de problemas. Ela, queiramos ou não, hoje é a representante da literatura do RS. Lamentavelmente, mas é.

Não é não! Representante da literatura do RS é o Sergio Faraco, é o Moacyr Scliar, é um cronista como Luis Fernando Verissimo, o Luis Antonio de Assis Brasil, o Tabajara Ruas, ela é apenas uma romancista tradicional que foi bem usada pela mídia e mais nada. A criação tem os seus sortilégios e só os que os conhecem é que sobrevivem, não adianta se falar sobre a arte de voar, é preciso voar. Se a minha linguagem não voasse, se os meus Viventes não fossem vivos não adiantaria nada eu defendê-los e não adiantaria nada dizer que a minha linguagem está voando se ninguém a vê voar. Agora, quando alguém me lê percebe que a minha linguagem voa.

A diversificação da sua obra, da poesia ao romance passando pelo ensaio e agora a nova investida História da Literatura Brasileira, isso atrapalha a sua apreensão pelo leitor. Afinal, quem é Carlos Nejar?

Isso dificulta porque ninguém consegue ver o todo, alguns me vêem como poeta e como poeta não me vêem numa posição abrangente como deveriam ver. Ou vêem o lado social ou vêem o lado metafísico ou o lado amoroso, as pessoas tendem sempre a rotular e eu sou irrotulável porque sou um ser vivo na palavra. Então o meu romance é completamente novo, tenho consciência disso, se fosse déja-vu seria altamente louvado, mas como é inventivo, inovador, precisa ser aos poucos descoberto. Ele está sendo descoberto. Aos poucos surge uma testemunha aqui outra ali a dizer “esse seu livro me ajudou a viver.” Por exemplo: Carta aos loucos. Eu tive na minha vida uma cena, a mais comovente: estava entre professores na PUC, em Porto Alegre, mais de 500 pessoas entre alunos e professores, e eu estava lançando Carta aos loucos. De repente se levantou um homem imenso com Carta aos loucos na mão e tentou falar e não conseguiu, então começou a chorar feito uma criança, quando ele conseguiu falar houve um silêncio total de respeito, era um uruguaio. Ele disse: “eu conheço todos os latino-americanos, conheço Onetti, é meu amigo Onetti, mas o seu livro me ajudou a viver. Eu telefonei outro dia para a organizadora de uma coleção infanto-juvenil da editora Global e ela disse: “eu já lhe conheço”, perguntei por quê? “O senhor é o autor de Carta aos loucos, esse livro mudou a minha vida. Um companheiro meu viu num ônibus uma moça lendo Carta aos loucos e chorando, depois veio me dizer. Então, tenho recebido manifestações de um, de outro, não tenho a mídia organizada. Estou vindo ao Rio exatamente para que me torne mais visível porque andei praticamente quinze anos no exílio dentro do país. Eu publicando livros e os suplementos literários praticamente me desconhecendo, salvo um ou outro que escrevia um artigo importante ou caía na mão de um jovem despreparado que só dizia bobagens a respeito do meu texto. Tenho consciência da transformação que estou trazendo e digo na maior humildade, porque estou na raiz da nova poesia brasileira. Eu começo a ver poetas por aí, sei que estou na raiz e quem está na raiz estará no cimo.

E essa sua investida pela História da Literatura Brasileira – Da carta de Pero Vaz de Caminha à contemporaneidade?

Comecei esse projeto antes do ano 2000 e desde então trabalho nesse projeto de fazer uma história da literatura que não seja uma história professoral, que seja algo de um criador diante dos criadores, que tenha o meu pensamento vendo o pensamento dos outros e que tenha abrangência, dizendo a verdade sobre muitos, alguns medalhões que não merecem a glória que têm mas que a mídia endeusou e outros esquecidos que eu quero trazer à luz. Então esse livro é um livro de justiça porque não estou ligado a grupos. Até os meus colegas acadêmicos podem estar desagradados com algumas criticas que faço. Não me importo.

E agora, o que vem, poesia, prosa...

Eu tenho um livro de sonetos chamado Inquilino da Urca que eu escrevi na época em que estava aqui e depois eu refiz, aliás, teci novos sonetos depois dessa minha volta para cá e esse livro vai sair muito breve. Tem um posfácio do Miguel Sanches Neto e são sonetos em chamas, porque eu pego a arte do soneto e levo até o último paroxismo. O que eu chamo “o delírio da razão.”

Você tem livros traduzidos?

Tenho livros que saem em Portugal , tenho traduções nos Estados Unidos, Alemanha, França. É uma coisa curiosa , sabe, o Austregésilo de Athayde um dia fez uma reunião de tradutores de escritores brasileiros e ali ele percebeu estranhamente que eu era o autor mais citado pelos tradutores, e ele não me conhecia. Ele se perguntou como um poeta tão reconhecido no exterior, aqui no Brasil nem é mencionado. Então ele quis me conhecer. Foi quando entrei para a ABL. Ele lutou por mim, escreveu um artigo luminoso a meu respeito. Ele era um grande homem, tinha uma visão incrível do futuro. Um dos poucos grandes homens que conheci. Então, no exterior, Itália, França, Portugal, sou muito mais reconhecido do que no Brasil. E esse pessoal pode ter uma grande surpresa...uma grande surpresa! Porque na medida em que às vezes tentam sufocar os valores eles preparam mais glória ainda.

Mas a tendência atual é sufocar os valores, o que vale é o que está na superfície, brevemente chegaremos a valorizar a matéria que bóia, a que não afunda.

Sabe por quê? Com exceções, há uma mídia despreparada, não está a altura da literatura, não têm cultura nenhuma, há um desconhecimento total de literatura e funciona por baixo do pano a influência das grandes editoras. De repente eles lançam um autor como se fosse algo extraordinário e não tem nada de extraordinário.

Voltando a sua História da Literatura, com ela fosse coloca os pingos nos is, procura fazer justiça e por isso compra algumas brigas.

Viver é comprar briga, mas não estou preocupado com isso. Eu posso ser amigo de Plauto, mas sou mais amigo da verdade e digo no início da minha História da Literatura: “não é o poeta que inventa a verdade, é a verdade que inventa o poeta.” Eu sou poeta porque eu fui inventado pela verdade. É o contrário da posição do Mario Quintana que diz que o poeta é o inventor da verdade, não creio nisso. É a verdade que inventa o poeta e é a verdade que faz com que eu escreva uma História da Literatura desde os primórdios até a fundação de Brasília dando uma validade e um juízo de valor a respeito de cada um, onde passa Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Ferreira Gullar, Manoel de Barros, João Cabral, Ledo Ivo e outros. Há coisas que eu digo que não agradam, mas não escrevi para agradar ninguém, digo isso bem no início do meu prefácio, digo que “não há fixação de gêneros, com sua clárida ruptura (poesia, ensaio, romance, teatro), o que existe é a habitação da linguagem.” É a linguagem que determina o gênero e não o gênero que determina a linguagem. A partir desse pólo eu trabalho toda história da literatura. Ninguém tratou disso antes porque trataram sempre de gênero. É a linguagem que domina, é a linguagem que vige no romance, é a linguagem que vige na poesia, é a linguagem que vige no ensaio. Se o ensaísta não habita a linguagem, não faz brilhar a linguagem, não é um bom ensaísta. Tenho visto também um outro aspecto, com exceções, as histórias da literatura são muito mal escritas, são burocráticas, têm um tom professoral, fazem apenas uma pequena referência sobre alguns autores, não são capazes de aprofundar. Eu tento aprofundar.

Nesse período que você aborda, deixou muita gente de fora, estabeleceu o seu juízo?

O que eu deixei de fora são autores que eu julgo menores, não fiz constar porque toda história da literatura é sempre uma antologia pessoal.

Você lembra algum que tenha deixado de fora?

Há um autor do RS, por exemplo, que o Ledo Ivo me perguntou porque não o havia incluído, segundo o Ledo ele era tão importante! Eu lembro de um livro dele “Cadeiras na calçada”, mas para mim, um cronista menor. Não vou citar outros. Os que inclui na História da Literatura são os que eu julgo importantes, ou pelo momento histórico, ou pela obra que criaram, ou pelo movimento que participaram. Dei, por exemplo, visibilidade a Eduardo Guimarães, dentro do simbolismo, é extraordinário e esquecido, autor de Divina Quimera, Alceu Vamosy que ficou restrito ao RS e tento dar um espaço bem maior, contistas como Samuel Rawet, dou validade a um Campos de Carvalho, que quase ninguém fala e é um extraordinário ficcionista, dei validade a Lila Ripoll, a um poeta que ninguém mencionou, uma rapaz novo que se suicidou grande lírico, ligado literariamente a Lila Ripoll, Nilson Bertoline, totalmente esquecido no RS e eu casualmente tenho seu único livro, “Poemas”. Tem poemas maravilhosos como Canto do Suicida, que diz assim: “Meu coração está de luto./ Meu coração está de treva./Ventos roubam-me pássaros da mão./ Onde meus gestos estarão?/ No riso da minha boca,/ ou no rosto dos afogados?/ Onde meus gestos estarão?// Meu coração está de luto?/ Meu coração está de treva?/ A noite é fria?/ A água é fria?/ Quem vestirá minha túnica vazia?” Eu trouxe à baila também Heitor Saldanha, que foi muito apagado pela figura do Mario Quintana, os dois mais ou menos eram comparáveis em idade e o Heitor Saldanha tinha uma visão das minas de carvão, uma visão dolorosa, trágica da existência e à sombra de Mario Quintana passou esquecido. Eu valorizo esse poeta e dou uma visão diferente a Viana Moog, também Adonias Filho que foi esquecido em virtude de seu posicionamento político, quando o pessoal duvidou que na época da ditadura, embora fosse ligado aos militares, protegeu os escritores. Assim como Ferreira Gullar foi valorizado pela política, Adonias Filho, que é um grande artista do romance, foi apagado pela política. Então é preciso colocar cada coisa em seu lugar. Digo, por exemplo, que Poema Sujo não é o melhor livro do poeta Gullar, é o mais badalado politicamente, mas para mim o melhor livro dele é Dentro da Noite Veloz e aquele livro sobre os galos, eu faço um juízo de valor que pode não agradar ou a gregos ou a troianos, não importa, faço esse trabalho com grande impassibilidade, com uma visão do tempo, olhando o horizonte, olhando a coisa estética, olhando a técnica do romance, olhando a arte poética e verificando onde estão os andaimes, os rebocos, o que não é poesia, por exemplo, os truques.

A sua História da Literatura foge a burocracia, o lugar comum, ela provoca a curiosidade do leitor. Você faz literatura ao contar a História. Imprescindível, no meu entender, a todos que gostam de literatura. E sobretudo àqueles que não se submetem ao que lhe é imposto por grupelhos donos da verdade.

Eu ouvi de Tarso Genro, e isso me tocou muito, que eu tinha feito literatura com literatura. Matéria viva. Olha o que digo do Dalton Trevisan, que eu considero o maior contista brasileiro, lógico. “O que parece virtude pode ser problema. Mesmo que ocupe a importância de destino. É a faca só lâmina: de tanto cortar o reboco, corta o núcleo da invenção. De tanto diminuir, diminui-se. Arrancando réstias, às vezes, do melhor. Nem sempre o texto vivo é o que sobra do que se tirou. E às vezes o que se tirou é o que estava mais vivo. Todavia, como não se sabe, freqüentemente, o que foi tirado. Julga-se o que existe. E o que ele corta - -é cada vez mais - a memória . A memória que está nas palavras e as palavras que estão na memória. O que existe, entretanto, é exemplar, imperioso, durável. Pode ter faltado ao amoroso leitor tudo o que não conheceu. Mas o que está fora não é do mundo. E o que está dentro, já se acordou de realidade. ”

O seu livro tem uma característica que o torna único, superior, você fala de literatura com conhecimento de causa, erudição, mas sem perder a emoção jamais.

Verifica aqui, minha colega de Academia, Lygia Fagundes Telles, eu digo: “E a invenção pode ser sol aceso. É que Lygia, criando, distingue-se mais pela intensidade dos sentimentos, das sensações que lhes perpassam os contos, do que pela percepção deles, no que é inconsciente. Seria essa insconsciência, lucidez? Salvo se for lâmpada posta ao avesso. E ao avesso, não é lâmpada? ‘Vida é uma coisa de forma’ (Joseph Conrad), forma é também coisa vivida. Clarice afirmou que ‘ Lygia corria o risco de ter a realidade’. Mas Lygia não tem a realidade, por ser ela que a demove. E qual a realidade que nos vai sonhando, se ela gosta de cortar o tempo e o tempo gosta de cortar seu texto, seguindo, após, na outra fatia, sendo muitas vezes sua palavra ‘o som do silêncio’? E é ali exatamente que o tempo se esconde. Ou a capacidade da autora de se esconder nele.”

Lygia fez algum comentário?

Não. O problema é que eu disse o que eu acho.

Mas você diz com tanta arte, tanta delicadeza, um lirismo crítico que não tem como se sentir ofendida ou desprestigiada.

Eu, por exemplo, escrevi sobre Ledo Ivo, escrevi coisas que elogiam e críticas duras; Ledo disse que para ele História da Literatura era um livro novo na literatura, mas ficou com meu livro para apresentar na Academia e não apresentou. Deixou que o tempo se escoasse sem apresentar, donde se depreende que ele não gostou das críticas que eu fiz, como ele me disse que gostou. Mas isso é uma coisa natural, eu não escrevi para agradá-lo. Eu falo aqui de Murilo Mendes: “A desestruturação nos poemas anteriores de Murilo Mendes, ao abraçar o Surrealismo, com imagens esvoaçantes para fora do texto, com vida própria, achou sua estruturação veemente e generosa em Tempo espanhol, com a perícia de amalgamar palavras como peixes todos no mesmo aquário verbal. Sim, cada poema tem a ferrenha espessura da pedra, a substância mineral da alma. E do tom, em regra, atonal, visionário, passou para o ritmo do cantochão das grandes catedrais medievais, conseguindo desdobrar a poesia em ‘planos múltiplos’. E na sua mutação, em Convergência (1963 – 1966) , assume a síntese do seu ‘organizado diamante’, com os grafitos e os murilogramas, verdadeiros epitáfios de toda uma cultura, arte e invenção, sobre a pedra votiva do tempo.” E aí eu critico e digo que ele só se tornou o grande Murilo Mendes quando ele foi influenciado por João Cabral de Melo Neto, porque antes os poemas eram como pandorgas, as imagens esvoaçavam. Um poema tem que ter estrutura, precisa existir como poema.

***

O vento não sossega nesta Casa
E me conhece pelo nome quando
Me sento na varanda e ressoando,
Nomeia cada coisa sob as asas.

E digo ao vento, quanto mais se atrasa,
Que ali o tempo investe , devaneando .
E o amor se vai sozinho longo e brando
E sozinha se move a luz das brasas.

Não, Vento, companheiro, já tão cedo
Te derramas sem morte e sem degredo,
Enquanto o peso do meu corpo absorve

Esta largueza toda que se deita.
E se nomeado estou, Vento me cobre,
Carrega-me contigo, enquanto ventas.


(Poema inédito de “Inquilino da Urca” , de Carlos Nejar)


Texto originalmente publicado no site do Jornal Vaia

08/04/2008

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